Saturday, May 21, 2016

Viaje com a escritora Deana Barroqueiro

Nos dias 28 de Maio e 4 de Junho (Sábados, às 16 horas), estarei na Feira do Livro de Lisboa para conviver com os meus leitores. A agência de viagens TRYVEL/TRYART fez uma parceria com a minha editora Casa das Letras/Leya, para a apresentação das duas viagens que faremos com os meus romances: a 1ª, a Malaca, Java, Samatra e Molucas, com "O Corsário dos Sete Mares", na 2ª quinzena de Outubro de 2016 (ver aqui o magnífico programa - http://tryvel.pt/tour/corsario-sete-mares/), e a 2ª, ao Egipto e Etiópia com "O Espião de D. João II - Pêro da Covilhã", na Páscoa de 2017. Durante a Feira haverá uma campanha com desconto para quem se inscrever até 15 de Junho.

Monday, December 28, 2015




Publicado pela Editora Livros Horizonte
Dezembro de 2001





Uraçá, O índio branco



Deana Barroqueiro



























Cap. I

Como um punho cerrado…


Gonçalo apertou o trapo molhado contra o feio lanho no rosto procurando estancar o sangue que escorria e a água meio salgada do rio trouxe-lhe lágrimas aos olhos pela dor renovada. Conteve-as com esforço. Nunca mais o veriam chorar de dor ou de raiva, nem haveria de sofrer um só dia que fosse as humilhações e maus tratos do padrasto. A sua revolta era como um punho cerrado com um coração lá dentro. Sufocara nele os sentimentos bons, deixando espaço apenas para o ódio e o desespero. Nunca mais permitiria que o ferissem no corpo ou na alma.
Fez o juramento sobre a pequena cruz de prata que a mãe lhe dera, há muito tempo, antes do pai se haver perdido numa viagem de desventura, deixando-os ao abandono, e ela se ter casado de novo. Levou a cruz aos lábios a selar a promessa sagrada pelo sabor do seu sangue que por fim cessara de correr do rasgão feito pelo golpe do chicote: Nunca mais!
         Deixou a praia e avançou pelo cais até ao grande terreiro da Ribeira das Naus, onde magotes de peixeiros, hortelãos e confeiteiros carregados com cabazes de mercadorias se cruzavam num vaivém incessante com mulheres e donas de boas casas que, seguidas dos seus escravos, percorriam as tendinhas remexendo e discutindo o preço dos produtos.  Gonçalo foi violentamente empurrado por um mariola[1] vergado sob o peso de uma enorme saca e caiu sobre uma pipa de azeitonas que quase derrubou, arrancando gritos e maldições à vendedeira:
  – Vê-me por ond’ andas, ó malparido, nã tens olhos no focinho? Mau raio…
            – Perdão, tiazinha, mas a culpa não foi minha...
          Esgueirou-se, rápido, para a zona dos estaleiros da construção do porto, iniciada por ordem d’ El-Rei D. Manuel logo após o regresso de Vasco da Gama com a nova da descoberta de um caminho de mar para a Índia. Havia sempre gente curiosa a olhar e a comentar os avanços desta espantosa empresa e Gonçalo também gostava de ver os homens empoleirados nas enormes vigas, espetando-as a maço no mar, para nelas se assentarem os grandes tabuleiros de pedra dos molhes. Ia escutando as conversas para se esquecer da dor no rosto e procurar um novo rumo de vida.
          – Inda vai demorar muito inté algum navio poder largar daqui! – o capataz sentia-se orgulhoso da atenção do grupo de mercadores que o questionavam.
          – Por isso, a Armada de Pedro Álvares Cabral partirá de Belém, no Restelo – disse o homem mais velho –, onde El-Rei vai construir um grande mosteiro em agradecimento pelo sucesso da Viagem do Gama.
          Não se falava de outra coisa, nos últimos tempos. Nesse domingo, aos nove dias de Março do ano de 1500, ia partir a primeira grande armada para a índia, com uma Embaixada d’El-Rei D. Manuel de Portugal para o Samorim de Calecut.
– Treze naus reunidas num só ano foi obra, sim senhor! – confirmou Luís Pires.
          – El-Rei não se poupou a despesas para a ter pronta antes de Março – o capataz não queria ficar fora da conversa daqueles homens ricos.
          O mercador mais velho sorriu:
          – E nós também não. A nau, comandada aqui pelo capitão Luís Pires, foi paga por nós e ainda teremos de dar parte da carga que trouxermos a Sua Majestade…
          – Mesmo assim o lucro que tereis com as especiarias vos há-de compensar com muita vantagem, meus senhores!
          – Mas muitos homens hão-de morrer na empresa e, quanto a isso, não há lucro que pague a miséria das mulheres e dos filhos que ficam ao deus-dará – lançou-lhes de longe uma mulher vestida de negro.
          – Nã tem dúveda! – disse o velho que emendava umas redes de pesca. – Mesmo quando os homens volvem sãos e salvos, são sempre as mulheres e os filhos que mais sofrem, deixados ao abandono durante anos. Depois andam por aí a pedir e a roubar!
          Os mercadores sorriram contrafeitos:
          – Não é tanto assim, tiozinho! – barafustou Luís Pires. – El-Rei ordenou, no regimento desta empresa, que parte da paga dos homens seja entregue à família, antes da partida, para que possam prover ao seu sustento na ausência dos pais, filhos e maridos.
             Gonçalo pensou na mãe e afastou-se do grupo.
***
          Não podia volver a casa, depois do que acontecera. Nem mesmo a mãe lograria protegê-lo da fúria do padrasto pois, vingativo como era, estaria a esperá-lo de chicote preparado para terminar o que começara e só a sua fuga interrompera. E o pior é que Afonso Freire não haveria de se contentar com uma dúzia de chicotadas, pois o enteado tornara-se um perigo, mesmo uma ameaça, para ele e o seu cúmplice. Um amontoado de homens e rapazes fê-lo aproximar-se, atraído pela algazarra que mal deixava ouvir o oficial que agitava nas mãos impacientes umas folhas de papel:
         – Ou vos calais ou tereis de pedir a outrem que vos leia o rol dos postos ainda por ocupar na frota de Pedr’Álvares Cabral!
 – Eh! Calai-vos lá e leixai o home falar!
 – Schiu! Deixai ouvir!
          O oficial começou a ler o longo rol e os homens iam entrando nos Armazéns da Guiné e Mina onde se faziam os preparativos de todas as frotas que partiam para o comércio ou para a descoberta.
          – Eu sou calafate, não tendes posto pra mim? Numa viagem de mais de três mil léguas de mar, por certo haverá muitos rombos nos navios e estas mãos são mágicas a calafetar frinchas, buracos e rachas no casco de qualquer nau ou caravela onde, juro-vos à fé de quem sou, não há água que adregue a entrar – e o mocetão mostrava, risonho, as mãos largas e calosas, enegrecidas do pez do seu mester[2].
           – Hoje é o teu dia de sorte, moço, que o capitão Bartolomeu Dias quer mais um na sua caravela. Vai lá dentro dar o teu nome ao escrivão.
           – Cá vou eu, patrãozinho, que se não deve fazer esperar a Fortuna e logo quando ela mete Luís Tomé, este vosso criado, no barco do Capitão do Fim que fez medo ao Cabo Tormentoso.
          Houve gargalhada geral e acenos de cabeça dos mais velhos. O Capitão do Fim, o grande herói da Passagem[3] era já um mito nas histórias dos marinheiros.
           – Vai-te em boa hora, meu doudo – disse o oficial ainda a rir –, e deixa-me laborar.
          O mocetão desapareceu no escuro ventre dos Armazéns que pareceu engoli-lo como uma onda gigante. Fascinado, Gonçalo não se movia, enredado num feitiço, esquecido da dor e da fome. Como se aquela voz fosse a de seu pai a chamá-lo de longe, do mar sem fim de sereias e de monstros que outrora lhe haviam povoado os sonhos de menino feliz.
– E que mais há, patrão? Lede prestes!
– Chiu! Deixai-o dizer.
         A agitação inquieta do grupo aumentava à medida que iam sendo anunciados os postos requerendo menor preparação ou experiência e Gonçalo foi empurrado para mais perto do oficial que bradou de súbito:
   – Três grumetes.
   Gritou, sem se poder conter:
   – Eu, patrão, que sou filho de descobridor!
            O oficial sorriu.
   – Quem é o teu pai, meu rapaz?
            – João Lourenço, que foi criado d’El-Rei D. João II e morreu a dobrar o Cabo.
  – Um órfão do Rei! – murmurou alguém.
          Fez-se silêncio no grupo ainda numeroso. Qualquer menção aos descobridores que haviam perdido a vida a tentar empresas impossíveis tocava fundo no coração dos marinheiros e se um filho desejava seguir o rumo de seu pai desaparecido, isso era causa maior de admiração. Na Casa da Guiné e Mina dava-se preferência aos Órfãos do Rei – nome por que eram conhecidos os filhos dessas vítimas da grande aventura dos descobrimentos – que quisessem embarcar como grumetes ou pajens em qualquer navio a contratar equipagem.
          O oficial pousou o olhar no rosto magoado, na ligadura improvisada manchada de sangue ainda mal seco que parecia contar uma trágica história, mas o rapaz não baixou os olhos. Quanta dor e revolta em alguém tão moço! Atravessavam-se tempos difíceis e as crianças cresciam antes do tempo em abandono e violência. A glória do Reino de Portugal comprava-se com oiro e miséria. E com as vidas dos seus filhos…
          A voz do oficial tornou-se quase gentil:
          – Acaso saberás ler? – se o pai fora um servidor de confiança do falecido rei D. João II, o rapaz tivera seguramente uma boa criação, talvez mesmo na escola do Paço, que o Príncipe Perfeito criara para os meninos nobres mas deixava frequentar aos filhos daqueles que o bem serviam.
– Sei ler e escrever em português e latim.
A prontidão da resposta fez rir toda a gente.
       – Com qu’então, um escolar acabado – troçou um velho mareante, arrancando novas risadas em redor. – Deve servir pra esfregar conveses!
         Gonçalo corou. O oficial franziu o cenho, com desagrado:
        – Ler e escrever são talentos preciosos, meu filho, numa embaixada ao Oriente como esta viagem. Muita tinta há-de escorrer das penas dos nossos escrivães, pois El-Rei quer tudo registado, o visto, o ouvido e o subentendido. Vai lá dentro e diz ao Escrivão da Mesa que vais da minha parte e que te inscreva na nau de Pedr’Álvares Cabral.
          A nau do Capitão-mor! Era muito mais do que ousara esperar da sua sorte. De repente, tudo parecia fazer sentido e o seu impulso de curiosidade transformara-se numa dádiva do Destino. Sabia, de ouvir contar, como a vida de um grumete a bordo de uma nau era terrível, mas qualquer coisa seria preferível ao que o esperava se o padrasto lhe deitasse a mão! Talvez pudesse embarcar já e, assim, a nau capitânia seria o melhor de todos os esconderijos.
        Não hesitou. Com um gesto de assentimento e gratidão ao bondoso oficial, correu por entre os resmungos invejosos de outros jovens menos afortunados para os Armazéns que o receberam como uma promessa de salvação.
***
          Engajado como grumete na nau de Pedro Álvares Cabral! Sentiu uma tontura de mareio e o gosto ácido subindo-lhe à boca lembrou-lhe que há muito não comia. Sentou-se no chão a um canto, costas contra tábuas, respirando fundo. Ainda aturdido pelo rumo que a sua vida tomava, vogando ao sabor de caprichosos acontecimentos que não dominava e se sucediam a um ritmo vertiginoso, Gonçalo submetia-se a um destino maior do que a sua vontade.
          O Escrivão da Mesa não pusera dificuldades à sua admissão, muito pelo contrário, ao saber da recomendação do oficial superior, tratara Gonçalo com uma gentileza que, de outro modo, o aspecto maltratado do moço não lhe mereceria. Ao vê-lo assinar com desenvoltura o nome no livro dos registos, sorrira com aprovação e chegara mesmo a dar-lhe conselhos sobre os cuidados a ter com os preparativos para tão longa e dura viagem – fato para o calor e o frio, pois as estações mudavam com as latitudes, além de alguns alimentos secos e de conserva.
          – Convém-te levar algumas viandas de reforço, mas só se tiveres esperteza pr’às bem esconder de olhos cobiçosos ou alguém que te defenda dos furtos desses rufiões que sabem fazer pela vida em todas as naus e caravelas! Terás uma ração por dia de vinte e seis onças[4] de biscoito e doze de carne, uma canada[5] de vinho, meia de vinagre e uma quarta de azeite, o que não basta para t’engordar, mas chega para te manter vivo. Peixe, terás tu mesmo de o pescar ou, se tiveres com quê, de o comprar ou trocar com quem o consiga fazer.
– Eu não bebo vinho, Mestre.
         – Ora aí tens uma boa moeda de troca! – dissera, rindo, o escrivão. – Não te há-de faltar clientela durante toda a viagem! – Entregou-lhe um papel com a licença de embarque e prosseguiu: – Já podes ir além, ao Tesoureiro, para receberes a metade da soldada a que tens direito. Mas toma tento, moço, dois cruzados[6] e meio ainda são uma boa maquia! Não gastes tudo nem deixes que to furtem.
          Gonçalo agradecera e fora receber o seu dinheiro. Agora apertava a pequena bolsa de pano com os mil réis que o tesoureiro lhe dera e tentava deitar contas à vida. Os grumetes eram os matalotes[7] mais mal pagos da nau, com cinco cruzados por toda a viagem – a metade da soldada de um marinheiro e este ainda tinha direito a cinco quintais[8] de pimenta e uma caixa de especiarias livre de impostos para vender por bom preço no regresso –, todavia, assim por junto, esta quantia representava para Gonçalo uma pequena fortuna.
          Não podia deixar de gastar algumas moedas no comer e na compra do indispensável fato para a viagem, mas o restante seria entregue à mãe, a fim de lhe dar alguma protecção contra o padrasto, em caso de necessidade. Tinha de arranjar maneira de lhe fazer chegar o dinheiro às mãos, em segredo e sem se deixar apanhar por Afonso Freire que nesse momento andaria a farejá-lo por toda a Lisboa, ansioso por lhe deitar a unha. Mas, por ora, precisava de comer, pois com tanta fome mal podia pensar… Ergueu-se e cambaleou, de novo mareado.
          – Ei! amigo, que se passa? – alguém o agarrara com força, impedindo-o de cair. Era um rapagão enorme, de rosto bondoso, que o olhava preocupado. – Precisas de ajuda?
          – Foi só um mareio, com tudo isto – e Gonçalo indicou a multidão ruidosa e azafamada que se apinhava dentro do Armazém – esqueci-me de comer.
          – Ora, moço, isso é lá cousa pra esquecer! Inté podes cair enfermo, por via desse golpe na testa. Senta-t’aí, que pra tudo há remédio, menos prá morte!
          Gonçalo obedeceu, pois não sentia forças para sair sozinho dos Armazéns da Mina e agradeceu os cuidados do desconhecido que se sentou ao seu lado, abrindo uma grande saca, enquanto dizia com cerradíssima pronúncia do Norte:
          – Olha, eu que já matabichei e comi o meu jantar nã me faço rogado a um naco de chouriço com umas boas fatias deste pão branco que me cozeu a minha santa mãe prá viage.
          O generoso gigante tirou do alforge meio pão do seu farnel e um enorme chouriço a que cortou dois bocados com a navalha, estendendo o maior quinhão a Gonçalo que, sentindo a água a crescer-lhe na boca, nem por cortesia fez menção de recusar. O prazer de enterrar os dentes nas brancas fatias de pão quase o fez esquecer o perigo e a desconfiança.
         – Chamo-me Mateus Ferrêro e, como diz o meu nome, sou ferrêro d’ofício. Vim a Lisboa pra embarcar nas naus d’ El-Rei a buscar fortuna.
          – Eu sou… João Silva – mentiu Gonçalo, entre duas mastigadelas deliciadas. Escrevera o nome falso no registo, para que o padrasto não lhe apanhasse o rasto e, embora sentisse remorsos por enganar aquele moço tão generoso, tinha de usar de todos os cuidados até sair de Lisboa. – Conseguiste posto?
          O rosto de Mateus escancarou-se num sorriso orgulhoso:
        – Vou na nau do Capitão-mor, já viste tal sorte? Na minha terra nem vão crer… E tu? Toma lá, pra empurrar a bucha.
        Estendia-lhe um pequeno odre de pele com água e Gonçalo tomou uns goles que lhe acalmaram a secura da garganta e o encheram de uma doce sensação de bem-estar como há muito tempo não sentia.
       – Vamos ser companheiros de fortuna, Mateus! – Sentiu que a providência divina continuava a protegê-lo, dando-lhe por amigo aquele gigante bondoso. – Eu também vou como grumete na nau de Pedr’Álvares Cabral.
       – Ora, quem havia de dizer! Dá-me cá esses ossos, companhêro! – e o mocetão apertou-o num abraço tão forte que quase lhe fez estalar as costelas. Porém, apercebendo-se do esgar de dor do grumete, largou-o, atrapalhado: – Perdoa-me, amigo, que sou um brutamontes e esqueço-me sempre da força que tenho…
Gonçalo ergueu-se, sorrindo:
       – Ainda estou inteiro e muito mais bem disposto, graças ao teu alforge que ajudei a esvaziar. Mas, agora, preciso de comprar algum fato para a viagem e de ir buscar um… uma encomenda da minha família e já não tenho muito tempo, que nos querem embarcados na nau às sete horas desta noite.
        Mateus sentiu na voz do moço uma angústia e um medo que o sorriso não lograva disfarçar. Estaria em perigo? Tinha o olhar de um animal acossado, quando mirava ansioso a rua ou um novo grupo de homens a entrar nos Armazéns. E aquela ferida terrível, como ou quem lha teria feito? Pois bem, gostava do rapaz, havia de o acompanhar e proteger como a um irmão mais novo.
         – Vou contigo, se te molesta a companhia, que sozinho vou perder-me no mundo.
        Sem esperar resposta, lançou o enorme saco de marinheiro para o ombro como se nem lhe sentisse o peso e dirigiu-se para a saída. Gonçalo seguiu-o contrariado, não vendo como poderia o ferreiro, com um tamanho daqueles, perder-se alguma vez no mundo. Muito embora preferisse esgueirar-se a sós pelas ruas de Lisboa e mostrar-se o menos possível até à hora de embarcar, não podia recusar a companhia de Mateus depois do modo como ele o tratara.
        Pouco tinham andado, com Gonçalo a caminhar quase colado aos calcanhares do seu companheiro a fim de passar despercebido, quando sentiu que lhe puxavam pela ponta da camisa. A ruela era escura e não havia ninguém à vista.
         – Espera aí, Mateus, que tenho de falar com este moço.
        Era Gil, o filho mais novo dos seus vizinhos, com quem pescava às vezes e por isso o miúdo adorava-o, porém, nesse momento parecia verdadeiramente assustado. Tomou-o por um braço e afastou-se um pouco com ele, para que o ferreiro os não pudesse ouvir:
         – Que se passa, Gil?
        – O teu padrasto anda à tua procura p’la Ribeira, parece doudo, diz que tu o roubaste e, se t’apanha, arranca-t’o couro à força de chicotadas. Quem é aquele? – o miúdo olhava embasbacado para a gigantesca figura do ferreiro, recortada contra o fundo mais claro da rua.
        – É meu amigo, não te rales com ele. Viste a minha mãe? Que lhe fez Afonso Freire? – perguntou Gonçalo ansioso, pois sabia como o padrasto era cruel e irascível.
       – Ele ameaçou bater-lhe se ela não lhe dissesse onde te tinhas escondido...
     – Mas ela não sabe de nada... – cerrava os punhos, de impotência e dor, por ter de abandonar a mãe à fúria daquele marido tão diferente de João Lourenço.
      – Berrava que o tinhas roubado e ela te deixava fazer tudo o que t’apetecia e que não passavas d’um vadio, só lhe davas despesa e não prestavas pra nada. Então a tua mãe disse-lhe qu’amaldiçoava a hora em que tinha casado com ele e s’ia embora para sempre, pois tu eras filho de João Lourenço e nunca poderias ser um ladrão ou um vadio.
       – A minha mãe saiu de casa? – as lágrimas vieram-lhe aos olhos, de angústia e de felicidade, mas com esforço impediu-as de cair. Ah, se a mãe pudesse libertar-se de vez daquele homem! Mas como iria viver?
       – Ela fugiu pra nossa casa e Afonso Freire não lhe pôde fazer nada porque a minha mãe não o deixou lá entrar.
       – Gil, eu tenho de a ver! Vou contigo para casa.
       – Não podes lá ir! Foi ela que me mandou à tua procura, pra te dizer que não te mostres e vás pedir ajuda ao teu padrinho. Tens de fugir, porque o teu padrasto quer dar cabo de ti. Que foi que lhe fizeste? Não lhe roubaste nada, pois não?
         – Não, Gil, eu é que descobri um roubo que ele fez. Mais tarde saberás o que foi. Olha, diz à minha mãe que estou inocente e arranjei maneira de me pôr a salvo. Em breve, se tudo correr bem, lhe hei-de dar novas do meu destino. Obrigado, Gil – e Gonçalo abraçou-o.
         – Cuida-te e boa sorte! Com aquele ao pé de ti, ninguém se vai atrever contigo! – e, a rir, partiu numa corrida, acenando um adeus.
        O fugitivo reuniu-se a Mateus que nada perguntou da longa conversa sussurrada que tinha presenciado e que pusera um brilho de lágrimas e de agonia no olhar do novo amigo. Quando o moço tivesse a certeza de poder confiar nele, logo haveria de desabafar.
         Gonçalo sentia amargura contra a vida que parecia ter prazer em fazer-lhe mal e àqueles a quem mais amava. Agora tinha mesmo de fugir e de deixar a mãe sozinha, a menos que o padrinho a protegesse. Tinha de lhe pedir ajuda, não para si, mas para ela. Porém, antes de mais, precisava de arranjar os papéis que lhe permitiriam embarcar.
          Conhecia muito bem o porto de Lisboa e todas as ruas, ruelas e becos que levavam das Casas e dos Armazéns da Guiné e Mina até à Praça do Pelourinho Velho, com os seus numerosos escrivães de banca armada, prontos a redigirem toda a sorte de documentos oficiais, discursos, redondilhas ou  cartas de amor e até, a troco de algum dinheiro, a forjar qualquer assinatura ou certidão. Se queria fugir por mar, havia mister de arranjar documentos que parecessem verdadeiros e ele sabia como fazê-lo. Depois das compras, como a tenda do livreiro Bernardo Salgado ficava a poucos minutos de caminho, poderia recolher o precioso embrulho que deixara à guarda do velho amigo de seu pai, antes de tornar ao cais para embarcar. Mas, antes, tinha de se livrar do companheiro.
          A praça era um chão de venda em leilão com pregão de móveis, panos de linho, ouro, prata e até escravos negros e mouros. O ferreiro retardou o passo para ver o pregoeiro apresentar as peças e dar início à almoeda, ante um numeroso grupo de clientes interessados. Homens, mulheres e crianças, distribuídos por grupos, segundo o sexo ou a idade, alguns trajados à portuguesa e com modos de quem já conhecia a servidão em casa de brancos, outros quase nus e com olhos de animais acossados, acabados de chegar nas naus que os haviam comprado aos seus senhores ou roubado às suas terras.
          – Tamanha feira como esta nunca se viu lá prós lados da minha terra! – pasmava-se o ferreiro. – Aqui nã falta nada! S’inté dão ali pregão de mulheres e homes como de bestas...
         – Sim, aqui há almoeda de todo o tipo de mercadorias, mas a feira do Rossio ainda é maior – disse, sorrindo do espanto de Mateus que parecia não ter limites face às novidades de Lisboa. – Por certo, hei-de arranjar por cá algumas vestimentas de bom preço em qualquer desses tendeiros que vendem roupa feita e usada. 
         Estavam diante de uma longa fila de tendas transbordando de roupas de todo o tipo: calças bragas e imperiais; gibões curtos e forrados, pelotes e tabardos para tempos mais frios; as opas e os saios[9] de melhor qualidade, para donas e donzelas, pendiam de cruzes de madeira suspensas de cordas. No fim da fiada de tendas, Gonçalo viu a banca de um escrivão de rua:
         – Vai dando por aí uma mirada aos pelotes, a ver dos preços, que eu preciso de uma certidão para embarcar e aquele escrivão por certo ma poderá fazer sem demora.
       O ferreiro, seguro de o poder vigiar e acudir a tempo se ele corresse algum perigo, deixou-se ficar junto às tendas de roupa, embora sem o perder de vista enquanto o moço tratava com o escrivão que, depois de uma breve troca de palavras, tomou uma folha de papel e uma pena e começou a escrever. Para que queria o rapaz uma certidão que, feita naquelas condições, não podia deixar de ser falsa? Foi arrancado aos seus pensamentos pelos vendedores e vendedeiras que o disputavam, com gritos e pregões:
       – Vede, senhor escudeiro – a mulher roliça sabia como adular o freguês, dando ao gigante ferreiro o título da fidalguia –, exp’rimentai esta aljuba[10], forradinha de pele, qu’é dina dum marquês.
        – Cuidas qu’inda é Dezembro, Maria das Mercês? Pra que quer um mancebelhão assi forte e de sangue na guelra mantelote d’invernia? Deixa-os comigo, que tenho mor  escolha...
          – Olha, Manel Seco, já lá diz o ditado “quem não tem que fazer, arme navio ou tome mulher”
          – Mulher, só sendo tu, Maria das Mercês! – e o algibebe suspirou ruidosamente fazendo rir toda a gente, incluindo a visada que corou de satisfação.
       Quando Gonçalo se lhes juntou e disse que iam na Armada e, por isso, queria vestimentas de matalote, os tendeiros, sem mais delongas, mostraram-lhe roupas de tecido forte quase novas e o grumete comprou por bom preço, depois de muito regatear, umas bragas, gibão, colete, duas camisas, um tabardo forrado de pele e um par de borzeguins[11] em couro. Mateus não resistiu ao apelo de um sombreiro azul com uma formosa pluma carmesim que a tendeira lhe pôs na cabeça, ajeitando-lhe as abas reviradas na frente, “como era de uso na fidalguia”.
        – Vede como vos vai bem! – Segurou o prato de latão[12] diante dele para que visse o efeito. – Como estais galante! Pronto pra encantar solteiras e casadas e ganhar o coração das mais belas. Com tanta donzela por casar, vão em má hora nas naus os moços mais garbosos e discretos e quedam-se os velhos feios e metediços. Que desbarato!
       – Tendes razão – disse a moça que experimentava uma touca, sem tirar os olhos de Mateus –, nesta terra já só há mulheres, meninos e velhos…
        – Tendes medo de não casar a gosto? – Manuel Seco parecia abespinhado com o rumo da conversa. – Olhai que quem muito escolhe pouco acerta!
        De súbito, Mateus, que se mirava e remirava na superfície polida e brilhante do prato de latão, deu um piparote na pluma e exclamou, encantado:
         – Estou de morrer!
          Gonçalo interrompeu-lhe o enlevo:
        – É tarde, temos de embarcar! Só preciso de me despedir de um amigo, livreiro de ofício, ali mesmo à esquina. Eu dou lá um salto, enquanto acabas de comprar o que te falta e pagas o fato. Espera-me aqui que não tardo.
         Ao vê-lo afastar-se, Mateus deixou o sombreiro para não perder tempo a discutir o preço e foi-lhe no encalço. O grumete não desejava a sua companhia e ele respeitava-lhe o segredo, mas se o queria proteger tinha de saber o que o assustava daquela maneira e o fazia olhar para todos os lados enquanto atravessava a praça quase a correr. Viu-o entrar numa loja com muitos livros expostos à porta em duas bancas de madeira, a que Mateus se chegou, pegando num livro para o folhear como se soubesse ler, mas de ouvido à escuta pois as vozes do amigo e de um homem idoso chegavam-lhe pouco claras:
           – …merecia prisão por te tratar assim, esse Afonso Freire! Fazes bem em partir e fica descansado que eu hei-de andar de olho nele e ver se apoquenta Constança.
          – Muito agradecido, Padrinho – a voz tremeu-lhe um pouco –, assim já me custa menos deixar a minha mãe. Nem me posso despedir dela, pois o meu padrasto deve ter gente à espreita para me apanhar.
         – Eu lhe contarei por que tiveste de partir.
        – Dai-lhe este dinheiro, Mestre Bernardo, dizei-lhe que eu hei-de escrever. Terei de enviar as cartas para aqui, em vosso nome.
        – Não precisas de deixar dinheiro, pois eu velarei para que nada falte a Constança. Podes partir descansado, meu filho, pois antes de ser teu padrinho, já eu era o melhor amigo do teu pai e, além do mais a tua madrinha, que Deus tem, adorava-te.
        Gonçalo sentiu um nó na garganta ao recordar Filipa Salgado, a mulher de Mestre Bernardo, sempre pronta a ajudar toda a gente e tão carinhosa como a sua própria mãe.
         – Tenho de ir, padrinho, vou embarcar daqui a nada. Podeis dar-me o… embrulho?
         – Escondi-o debaixo daqueles pergaminhos velhos. Mas, não seria melhor deixá-lo aqui, em segurança? Eu me encarregaria de o fazer chegar às mãos do Meirinho-mor, com a história do roubo, pois trata-se de um caso de espionação por um traidor ao serviço de estrangeiros.
       – Não, Mestre Bernardo, não posso fazer isso! Seria um dos primeiros lugares onde o meu padrasto viria fazer uma busca, se suspeitasse que o escondíeis aqui, e não tenho dúvidas de que vos destruiria a loja e vos faria todo o dano que pudesse. Terei de o levar comigo.
      – Toma cuidado, que ainda não estás livre e Afonso Freire, com os seus negócios escuros, é homem sem honra nem escrúpulos.
        – Bem o sei! Estarei atento e escondido na nau. Dai-me agora a vossa bênção.
       – Deus te abençoe, meu filho. Vai em mui boa hora!
     Abraçaram-se longamente com os olhos húmidos de lágrimas e Gonçalo saiu da loja, tropeçando em Mateus que não teve tempo de se esconder.
– Que fazes tu aqui? – perguntou sobressaltado. – Que foi que ouviste?
– Que não és João mas Gonçalo, que estás em perigo e tens de fugir. Olha, é certo que mal me conheces, mas eu sou um tipo honesto e amigo do meu amigo. Por isso, podes confiar em mim e contar comigo pró que der e vier. Ou vou-me embora e tu tens de te haver sozinho.
            – Tens razão, Mateus, ajudaste-me sem me conhecer e eu paguei-te com desconfiança e mentiras. Perdoa-me e ouve a minha história, enquanto vamos para o cais. Mas, antes de mais, guarda-me este embrulho no teu saco e jura-me que o destróis se me acontecer alguma coisa.
           – Juro! – prometeu solenemente o gigante.
         – Ainda  vamos a tempo de comprar,  por aqui perto, algumas viandas para a viagem, pois foi o próprio Escrivão da Mesa do Armazém da Mina que me aconselhou a levar algumas conservas e doces a fim de ajudar à ração de grumete que não deve ser lá grande cousa.
          – Isso é o que mais me apoquenta nesta viage, que sou uma alimária de muito sustento!
          Gonçalo riu-se e, puxando Mateus por um braço, virou no  Arco dos Barretes para a Rua da Confeitaria, onde ainda havia muitas mulheres nas bancadas cobertas por panos brancos muito limpos, chamando os compradores com os seus vivos pregões a oferecer-lhes pinhoada, nogada, marmelada e laranjada, bem como toda a sorte de conservas, por entre os enxames de moscas, mosquitos e abelhas que ferravam como danados e que as tendeiras sacudiam com panos, sem lograrem afastá-los dos bolos de açúcar de cana e ovos, nem evitar que zumbissem freneticamente as asas até  à morte, quando se colavam à superfície lisa e brilhante das tigelas de marmelada ou se afogavam nas espessas gotas douradas que destilavam dos bojudos potes de mel.
           – É o que melhor se aguenta em longas viagens, desde que não fiquemos em calma durante muito tempo, parados sem vento no meio do mar – disse Gonçalo, distribuindo pelos dois sacos de marinheiro as quatro tigelas de marmelada e os dois potes de mel que tinham acabado de comprar, após duro regateio, pois o moço começava a assustar-se por ver como as moedas, que horas antes lhe pareciam uma fortuna, se escoavam por entre os seus dedos como areia da praia. – O meu pai contava-nos, a mim e à minha mãe, que na passagem da Guiné, quando isso acontecia e o calor apertava, o mel e a marmelada azedavam, a manteiga até fervia e todo o comer da nau se estragava.
Desciam em direcção ao porto, através do emaranhado de ruas e ruelas de Lisboa, divididas pelos muitos mesteirais e ofícios, discutindo e comprando objectos ou produtos de maior necessidade e, aos poucos, Gonçalo contou ao novo amigo a história da sua vida e a estranha e perigosa aventura que pusera o padrasto em sua perseguição.
Estavam prestes a chegar à Ribeira  Velha onde diariamente vinham muitos peixeiros, hortelãos, confeiteiros, cortadores, padeiros e doceiros a vender os seus produtos para alimento da grande cidade, sobretudo agora com a preparação de tão grande armada e, mesmo de longe, já se viam os efeitos dessa azáfama pelo grande número de homens e mulheres que se cruzavam com eles, apressados, carregando cestas, caixotes e sacos de toda a sorte, metendo-se de permeio e separando-os por momentos.
Mateus vinha mais embaraçado, por ter tirado na última parte do caminho o saco a Gonçalo com um “Deixa lá ver isso, pequenelho, que mal podes com uma gata pelo rabo!” e transportava agora os dois fardos nos lombos como se fossem duas trouxinhas de doces, mal lhes sentindo o peso, apenas um pouco importunado pelo seu tamanho quando batiam nos outros carregadores, arrancando-lhes maldições e palavrões, enquanto rodopiavam num esforço para não darem com a carga no chão.
– Bons olhos te vejam, rapaz! – o homem saíra da taverna e pousara-lhe a mão no ombro. – Ond’é que te meteste, magano, que o teu padrasto anda a ver de ti desde manhãzinha, sem lograr pôr-t’as vistas em riba?! Afonso Freire inté pediu ajuda aos amigos pra te darem o recado mal te vissem e te levarem logo pra junto dele... pra nã te perderes de novo!
– Deixe-me ir, Ti António, que o meu padrasto quer acabar comigo!
A voz trémula do moço e a expressão assustada não pareceram comover o homem de rosto avermelhado e olhos remelosos, raiados de sangue pelo muito vinho já emborcado.
– Se o Freire está de mal contigo é porque lh’aprontaste alguma desfeita e ele quer pedir-te contas. E daqui já nã sais, inté qu’ele chegue, que lhe vou mandar recado.
Mateus acercou-se lentamente por trás do homem, vendo como a mão pousada no ombro do amigo num gesto que à primeira vista parecia afectuoso mas se cerrava sobre ele como uma garra. Era disto que Gonçalo andara a fugir todo o dia e, se antes se tinha disposto a ajudá-lo, agora que sabia a verdade não iria permitir que uma corja de bandidos levasse a melhor sobre aquele rapaz corajoso e decidido a sacrificar a sua vida por uma boa causa.
– Eh! amigos! – disse sem dar mostras de conhecer Gonçalo que, apesar da sua turvação, se apercebeu de que o ferreiro se estava a fazer mais simplório do que era. – Dizei-me, pardeus, por donde se vai prá Ribêra das Naus, que nã atino com uma cidade assi tamanha.
– Nã há qu’enganar, home, é por i abaixo – e Ti António apontou na direcção do rio, abrandando um pouco a vigilância sobre a sua presa.
De longe chegava-lhes o cheiro do Mal Cozinhado, uma dezena de cabanas com mesas e bancos de tábuas corridas, onde muitos homens e mulheres estavam ainda com os seus braseiros de fogo a assar peixe para dar de comer aos trabalhadores e viajantes.
– Por aqui ou por ali? – perguntou Mateus, com ar inocente, piscando um olho ao amigo e movendo o corpo para a esquerda e para a direita, de tal modo que as pontas dos sacos embateram contra o homem, derrubando-o.
Solto, Gonçalo largou a correr rua abaixo. Ti António gritou enquanto forcejava por se erguer, empurrando o ferreiro que fingia ajudá-lo, desfazendo-se em desculpas, mas o mantinha contra o chão:
– Manel Cruz, Maceiro! Deixa-me, home, que se nos foge o ladrão!
Dois rufiões de má catadura assomaram à porta. Mateus viu-os mas prosseguiu com a farsa:
– Perdoai o meu mau jêto, que sou uma besta azambrada[13]. O moço era um ladrão? Cuidei que era vosso filho!
Ti António pôs-se finalmente de pé e, dando um encontrão em Mateus, berrou de novo:
– Cruz, Maceiro! É o enteado do Freire. Escapou-se-me das unhas, o ladrão. Vai além, caçai-o depressa!
Os dois vadios puseram-se a correr e Mateus foi-lhes no encalço, bradando:
– Se é ladrão, deixai-o comigo, gentes, que lhe deito a unha num instante.
A tarde findava, as sombras adensavam-se ainda violáceas e já não tardaria muito para a escuridão cobrir os molhes do porto com o seu manto, porém a lua quase redonda daria luz bastante para se poder andar pelas ruas sem se atolar nos buracos e valas das inúmeras  construções.
Mateus viu Gonçalo enfiar-se por uma ruela e os dois rufiões encurtarem a distância que os separava e apressou a corrida, apesar do peso dos sacos e das pancadas que eles lhe davam contra as pernas com os solavancos. Entrou na viela deserta e negra quase ao mesmo tempo que os perseguidores e, sem abrandar a corrida, largou um dos sacos num recanto escuro e, com um esforço titânico, ergueu o outro fardo nos braços e lançou-o com toda a sua força contra os dois homens que corriam a par. O pesado saco acertou-lhes em cheio nas cabeças e costas derrubando-os como a mancais, os paus do jogo do fito ou da malha.
– Gonçalo! – gritou Mateus a plenos pulmões. – Pára de correr que destes dois já tás livre.
O moço estacou ofegante e virou-se para trás vendo a alta figura do amigo inclinar-se por sobre os corpos caídos, como a certificar-se de que estavam bem desacordados. Correu para ele e abraçou-o:
– Bem hajas, Mateus, que me salvaste de novo. Grande golpe!
– Pois foi, mas o pior é que as malgas da marmelada e os potes de mel devem estar feitos em cacos!
– Que todo o mal seja esse, meu amigo! Vejamos os estragos e saiamos daqui, antes que estes despertem ou apareça a guarda – disse, rindo, enquanto abria o saco e apalpava o conteúdo.



Cap. II
 A rota secreta das especiarias

          Todo o povo de Lisboa quisera participar na despedida da armada de Pedro Álvares Cabral e o extenso areal da praia do Restelo, assim como os campos em volta quase desapareciam sob os pés de uma imensa multidão, vestida com os seus melhores trajos domingueiros, à espera de ver de perto El-Rei ou pelo menos algum famoso descobridor de que a frota ia bem recheada. Uma aragem de emoção, mais forte do que a brisa fresca de Março, trazia um arrepio aos corpos e um brilho novo aos olhos. E não era para menos, que o espectáculo merecia pena e tinta de um cronista: ancoradas ao longo da baía do Restelo, nove naus, três caravelas e uma naveta para transporte de mantimentos, acabadinhas de sair dos estaleiros da Ribeira das Naus, espraiavam as velas brancas com as vermelhas cruzes de Cristo ao centro, como borboletas gigantes de belas asas ao vento, impacientes da espera.
– Formosa Armada, sim, senhor!
– El-rei inda quer fazer tratos com esse tal Samorim de Calecut que, na primeira viagem, por pouco não matou o capitão Vasco da Gama e os seus homens?
– É que o gosto da pimenta e o cheiro da canela são mais fortes...
– Por via das dúvidas vai esta frota tão carregada de armas e de soldados que mais parece ir combater que comerciar.
– D. Manuel quer dar-lhes o recadinho: mais vale serem nossos amigos do que nossos inimigos…
          Gonçalo ouvia pedaços das conversas, enquanto se mantinha direito e quieto, como os restantes membros da equipagem, na ordem estabelecida pelo Guardião, o ajudante do Mestre responsável pelos grumetes, à força de apitadelas e berraria. As tripulações de todas as naus estavam formadas na praia – a sua no lugar de honra, por ser a do Capitão-mor –, tendo à retaguarda as alas dos quase mil homens de armas destacados para a Índia para o que desse e viesse. Esperavam por Sua Alteza que, depois da missa, viria até à praia, em solene procissão. a fim de fazer as suas despedidas e assistir à partida.
         O coração batia-lhe descompassado e a ferida, que começava a cicatrizar, latejava e aquecia-lhe o rosto, secando-lhe os lábios como pergaminho. O pergaminho! Pensou no precioso in-folio[14] guardado na nau, enrolado na camisa velha e suja e assustou-se de novo. Ainda não estava a salvo no mar, muito pelo contrário, por azar seu tinha sido enviado para aquela manobra em plena praia com todos os olhos postos neles e, em qualquer momento, podiam reconhecê-lo e deitar-lhe a mão. O padrasto e os seus cúmplices sabiam do risco que corriam se ele contasse o que descobrira, por isso tinham de reaver o mapa a todo o custo e fazer desaparecer a testemunha perigosa.
Não acreditava que Afonso Freire o julgasse capaz de deixar a mãe e embarcar à aventura, embora não se pudesse fiar nisso… No momento da inscrição dera o nome falso de  João Silva para o iludir e rapara o cabelo, mas depois do ataque na noite anterior… Fizera descair o barrete para a cara, cobrindo em parte a ferida que alguém lhe tratara na nau por ordem do Guardião, esperando passar despercebido entre tantos moços e homens feitos que compunham as hostes dos grumetes e marinheiros.
Discretamente olhou em volta, temendo ver rostos conhecidos a farejá-lo no meio da multidão, mas de familiar apenas viu a cabeça de Mateus, ao longe, assomando vários palmos acima das dos companheiros no grupo dos mesteirais – carpinteiros, serralheiros, ferreiros, calafates, estrinqueiros[15] e até um meirinho para julgar os crimes – que compunham o grosso da marinhagem e levavam Gonçalo a pensar na Armada como uma cidade flutuante, muito bem organizada, com o seu governo, os seus guardas, a gente grada que dava as ordens e era servida e a arraia-miúda dos trabalhadores que apenas podiam fazer o que lhes mandavam.
O padrasto marcara-o para toda a vida, porém a feia cicatriz fazia-o parecer mais velho, ajudando-o a alistar-se na frota sem ter de responder a muitas perguntas sobre a idade. Tinha-se precavido para o caso de lhe pedirem uma autorização escrita do pai ou tutor para poder embarcar se o julgassem com menos de dezasseis anos, pois conseguira de um desses escrivães da Praça do Pelourinho Velho um documento que passaria facilmente por original aos olhos pouco atentos das autoridades do porto. E assim fora.
***
Como uma nuvem de mosquitos, batéis de todos os feitios e tamanhos, embandeirados e galantes, iam e vinham num grande frenesim entre as naus e a praia a levar e trazer gente. Os que não tinham licença para deixar os seus postos choravam de alegria e mágoa ao verem a família, encolhida de medo, dentro dos barquinhos que se encostavam ao casco da grande nau e, debruçando-se da amurada, lançavam-lhes as últimas recomendações, recolhendo numa corda cestos, embrulhos e sacolas com os presentes e mimos de última hora, para adoçar os momentos de solidão e completar o magro rancho da nau, muito embora a armada levasse grande abundância de carnes e pescados secos e salgados, grãos e favas e todas as outras viandas necessárias para tão longa viagem e para cerca de mil e trezentos homens.
         Qual é a nau capitânia, meu pai? – o marinheiro içara o garoto deslumbrado para dentro da caravela, cujas madeiras novíssimas e envernizadas devolviam ao sol um brilho quente de cobre.
          – É a que está na dianteira, para ser a primeira a sair e indicar o caminho às outras e fazer-lhes os sinais combinados.
– Sinais?
     – Sim, chamar os pilotos a conselho, dar-lhes ordens para lançarem âncora ou combaterem em caso de ataque. E todos têm de obedecer, tal como tu, sempre que a mãe te der uma ordem, senão, quando eu voltar, terás de me prestar contas. E agora anda daí ver as nossas bombardas[16] de meter medo a qualquer corsário por mui feroz que possa ser.
***
            Na Ermida de Nossa Senhora de Belém acabara a missa cantada, as fanfarras soaram e fez-se um silêncio comovido e atento quando o Capitão-mor ajoelhou diante d’El-Rei que lhe entregou a bandeira da Ordem da Cavalaria de Cristo:
__  Pedro Álvares Cabral, Nós muito vos recomendamos que guardeis este regimento sobre todas as cousas. Tomai este estandarte, pois sois Capitão-mor da Armada com poder de baraço e cutelo[17] em toda a pessoa nela embarcada que vos desobedecer. Agora prestai vosso juramento, preito e menagem.
__ Juro, com a ajuda de Deus, levar a cabo esta empresa como leal e fiel vassalo de Vossa Majestade, a quem sempre servirei com honra sob esta bandeira por Vós posta em minhas mãos. – Beijou a orla do estandarte e a mão do rei.
Ergueu-se, alto e magro, um rosto enérgico de trinta e poucos anos marcado pelas duras campanhas de África, os cabelos e a barba comprida acinzentando-se de cãs[18]. O seu olhar sereno pousou sobre os capitães que, vestidos com os seus trajos de gala, assistiam de pé a respeitosa distância e acrescentou:
__ O mesmo exijo a todos os meus capitães e oficiais, tendo Vossa Majestade por testemunha. Senhores, jurai seguir o rumo que eu vos traçar e obedecer-me em tudo o que vos mandar.
        Um por um, os capitães e oficiais das naus fizeram os seus juramentos. Cabral conhecia e respeitava muitos deles, homens experimentados no mar, exploradores curiosos e sabedores: Sancho de Tovar, o seu sota-capitão[19]; Duarte Pacheco Pereira, o navegador de confiança de D. João II, mandado em inúmeras viagens secretas a procurar novos mundos; Nicolau Coelho, o companheiro e amigo de Vasco da Gama; os irmãos Bartolomeu e Diogo Dias, os primeiros a dobrarem o Cabo das Tormentas e a descobrirem a Passagem entre dois oceanos; Simão de Miranda, Vasco de Ataíde e tantos outros… Comandar tal gente era um privilégio que talvez não merecesse. Sentiu orgulho e temor, mas nada no seu rosto o mostrou.
***
          Os gritos e correrias da multidão, que quase lhes desmanchara a formatura, alertaram Gonçalo para a chegada do rei. Por cima do ruído do mar e da gente, o seu ouvido apurado conseguia distinguir os cânticos da procissão. Em outros tempos fizera parte do coro da capela d’El-Rei D. João II e cantar continuava a ser um dos seus maiores prazeres. Na frente, sob o dourado pálio, vinha D. Manuel I com o Bispo e o Capitão-mor e todos os capitães atrás deles. Transportando relíquias e cruzes, os oito padres franciscanos que iriam fazer bons cristãos dos pagãos da Índia caminhavam descalços, mais os oito capelães das naus com o seu vigário, seguidos de toda a corte e de muita outra gente honrada, cantando  e rezando com piedosa devoção. Todos se ajoelhavam à passagem do rei e das relíquias, mas os olhos dos mais curiosos, sobretudo das mulheres, não perdiam pitada e os ditos desmentiam a compostura dos corpos.
Na praia romperam as fanfarras e todas as naus dispararam salvas de artilharia. O som das trombetas, atabaques[20], sestros[21], tambores, flautas, pandeiros e até de gaitas de foles levantavam os espíritos mais melancólicos e muita gente bailava, mostrando que o coração de todos se movia entre o prazer e as lágrimas com a partida de tantos dos seus homens. Os Capitães e primeiros oficiais foram postar-se diante das suas equipagens, apenas Pedro Álvares Cabral se manteve na bancada real, junto de Sua Alteza que continuava a fazer-lhe as últimas recomendações numa voz apenas para os seus ouvidos.
Soaram as trombetas para recolherem às naus, fizeram-se novas salvas com artilharia e, em perfeita ordem, os capitães começaram a desfilar com os seus homens diante d’El-Rei para lhe beijar a mão em despedida. D. Manuel fez a todos muitas honras, dizendo graves e bondosas palavras, mostrando-se muito agradecido por tamanha lealdade e tão precioso serviço prestado não somente à sua pessoa mas também a Deus e ao Reino de Portugal. Recomendou ainda aos capitães o bom trato da gente, sobretudo o reparo dos doentes.
          Gonçalo tinha a alma presa na cerimónia da despedida. Sentia orgulho em estar ali e imaginou por momentos o pai, com ele ao lado, a desfilar com os seus homens diante do Rei Venturoso para lhe beijar o anel e o coração apertou-se-lhe de dor e saudade. Uma mão de ferro apanhou-o pelo cachaço e ergueu-o no ar como se fosse um cachorro vadio. O padrasto! A seu lado, de rosto de pedra e olhos acerados, o espião estrangeiro sorria de triunfo.
          __ Finalmente caçado como um rato que és! Quem havia d’imaginar que tinhas esperteza pra t’esconderes aqui?! Já desesperava de t’encontrar e afinal apanhei-te por acaso e onde menos contava ver-te. Inda gostava de saber como escapaste ao Manel Cruz e ao Maceiro e os deixaste desacordados na viela, que não s’alembram de nada Mas, antes d’ajustarmos contas, vais dizer-me onde tens o pergaminho roubado e, asinha[22], qu’o tempo voa!
        Gonçalo empalidecera. Mais uns minutos e teria ganho a sua liberdade e… a vida. Porém não iria ceder, nunca lhes entregaria a carta de marear com a preciosa derrota[23] traçada com tanta dor e sacrifício por Vasco da Gama e os seus homens! Derrota secreta que seria paga a peso de ouro aos espiões. Lançou-lhe, altivo:
          __ Vós é que o roubastes e sois traidor!
      Afonso Freire corou de fúria e medo, os dedos apertaram-se mais em volta do magro pescoço do enteado e Gonçalo gritou. O maldito do rapazelho ainda o havia de perder! O castelhano disse entre dentes, inquieto:
          __ Cuidado con la gente que nos mira!
      De longe Mateus apercebera-se, inquieto, dos movimentos suspeitos dos dois homens junto do amigo e esperava o momento de intervir. Também o Guardião, sempre vigilante, notara a agitação e aproximava-se.
           __ Que temos aqui? Afastai-vos que a equipagem vai agora desfilar.
         Afonso Freire disse, arrogante:
          __ Venho buscar o meu filho que não tem licença minha pra embarcar.
        O oficial mostrou no rosto todo o desagrado que lhe causava a cena inesperada:
         __ Agora?! Mas o moço já está engajado na nau capitânia! Não podemos ficar com faltas na equipagem no momento da largada…
          __ Mas eu não o deixo partir!
        __ Olhai pró qu’eu estava guardado! Isto só a mim… na hora da saída! __ o homem estava furioso. __ Esperai, enquanto vou chamar o Meirinho da Armada.
         Afonso Freire e o castelhano fizeram um movimento de recuo ao ouvir mencionar o oficial da Justiça e, apercebendo-se do seu receio, o desesperado grumete tentou a sorte:
          __ Guardião, eu não sou filho deste homem, só trabalhava para ele. Vede, tenho aqui a licença do meu pai – e entregou-lhe o documento falso.
        O Guardião não sabia ler, mas não quis dar parte de fraco para não perder a sua autoridade. Além disso não podia ficar sem um grumete na hora da partida da Armada.
         __ Parece-me em ordem. Porque dizeis que é vosso filho, se o não é?
         Antes que o padrasto falasse, Gonçalo disse:
       __ Não tendes de vos preocupar comigo nem com o pergaminho, que está bem guardado. Mas agora deixai-me partir e dar rumo à minha vida e eu não vos anojarei[24] na vossa. Mas se me impedis de partir, eu terei de dizer ao meirinho o motivo da vossa proibição.
       Afonso Freire sentiu a promessa e a ameaça na fala do enteado, pensou no oficial da Justiça e arrepiou caminho:
        __ Vede, Mestre, como é ingrato! Trato-o como um filho e paga-me desta sorte. Levai-o pois convosco e fazei-o trabalhar, qu’ é madraço.
         Fez um sinal ao castelhano e começou a afastar-se, atirando-lhe entre dentes um “Não julgues que me escapas” que o Guardião não ouviu, pois bradava contra Gonçalo, descarregando nele o mau humor causado por aquele aperto de última hora:
         __ Se me aprontas mais alguma, meu malandro, levas vinte chicotadas nesses lombos que ficas sem pele pra te cobrir os ossos! E toma tento que vou andar d’ olho em ti…
         – Ele não queria perder um criado, Mestre Guardião, foi só por isso que aqui veio...
       As fanfarras soaram de novo interrompendo o Guardião que retomou apressado o seu posto, permitindo ao grumete respirar fundo e dominar a tremura do corpo. Escapara por pouco! Mateus, na ala dos mesteirais, percebeu que o perigo passara e sossegou, afrouxando a tensão dos músculos preparados para a luta, pois dispusera-se a arrancar Gonçalo das mãos dos seus inimigos a soco se preciso fosse, armando tal confusão que lhe permitisse escapar, nem que para isso acabasse no Tronco[25] e perdesse a viagem. Pedro Álvares Cabral avançou até ficar diante dos seus homens que se perfilaram vaidosos e, ao som do apito, começaram a desfilar com brio. Gonçalo fez como eles, contente por ter cumprido o seu dever – João Lourenço, se fosse vivo, teria tido orgulho no filho.
***
Na orla da praia foi-se perdendo a disciplina e a ordem nas fileiras, à medida que os homens procuravam embarcar nos numerosos batéis para serem levados às naus. Os familiares e amigos, como uma onda impossível de reter, tinham rompido o cordão de soldados que os separava do local de embarque e agarravam-se aos seus entes queridos, chorando e gritando de desespero, com medo de não mais os voltar a ver:
__ Ai, marido da minh’alma – soluçava uma mulher ainda nova, o rosto desfeito em lágrimas, com as mãos fincadas no barco que partia e já com a água pela cintura, sem atender aos rogos do marido para volver à praia –, que vou fazer sem ti? Vem comigo, home de Deus, me deixes ao abandono!
Dois homens entraram pelo mar dentro e, desprendendo-lhe à força os dedos enclavinhados na borda do barco, arrastaram-na já desacordada até à praia, para junto da mulher idosa que, de joelhos, pranteava:
__ Ai, o mê rico filho, que se vai perder no mundo! Ai, minha Nossa Senhora do Ó, livrai o mê menino de todos os perigos, qu’eu prometo dar três voltas de joelhos na vossa igrejinha…
Os prantos, as rezas e os gritos quase faziam perder o ânimo aos menos esforçados e muitos dos grumetes mais moços soluçavam como crianças que eram, recebendo dos marinheiros mais velhos, apiedados, algumas palavras de consolo. Os barcos iam e vinham num movimento contínuo a que não se via o fim, pois a  gente era tanta que mal se podia romper na praia e as tripulações misturavam-se, cada um buscando os esquifes[26] do navio onde se engajara, por entre os atropelos dos que saltavam para dentro por engano e logo eram escorraçados dos pequenos barcos já apinhados de gente e balançando perigosamente:
__ É este o batel da d’El-Rei?
__ Não, home de Deus, este é das gentes de Nicolau Coelho. P’rás do Sota-Capitão Sancho de Tovar é lá ao fundo. – E o contramestre impaciente gritou para os seus homens: __ E, vós, tratai mas é de remar.
__ Dianho! Esperai aí, que também ‘tou enganado! Atão nã ides p’rá Nossa Senhora da Anunciada, a caravela de Nuno de Leitão?
__ És mesmo bruto, home, atão nã vês qu’aqui é o cais das naus, por ser mais fundo? Desanda, qu’ inda tenho mais viajes pra fazer.
__ Agora, Mestre? Mas já ‘tamos fora da praia e eu nã me quero molhar!
__ Olhai a fidalguia! Um marinheiro que nã quer molhar as barbatanas! Eh, rapazes, lançai-m’ esse marau borda fora!
Sem se fazerem rogados, dois mocetões agarraram o desprevenido intruso e lançaram-no ao mar onde caiu de chapão, esbracejando e soltando pragas, mal se ergueu sufocado, com a água pelo pescoço. Um coro de chistes e risadas acompanhou o seu regresso à praia.
***
No alto estrado, ricamente alcatifado e com toldo de espessos brocados, erguido  na praia para abrigar El-Rei e a Corte, D. Manuel captava de longe as emoções e o sofrimento do seu povo que no afã de o servir lhe rasgava com o corpo e a alma o caminho da Grandeza e da Memória, talvez até a senda de um Império na Esfera do Mundo. A ‘Sphera, a divisa dada anos antes pelo seu cunhado, el-Rei D. João II, depois de lhe ter assassinado a sangue-frio o irmão Diogo, fora uma ironia e um suborno daquele rei implacável para o apaziguar, para lhe calar o ódio e a sede de vingança, oferecendo-lhe o trono após a sua morte, se não houvesse herdeiro. Assim a ‘Sphera tornava-se um símbolo de uma espera e de uma esperança à primeira vista impossíveis, pois D. Manuel era o nono na longa linha de pretendentes ao trono de Portugal.
Porém ele fora predestinado, desde o seu nascimento em trinta e um de Maio de mil quatrocentos e sessenta e nove, por uma estranha conjugação de astros e por ser dia do Corpo de Deus, e o Destino se encarregara de ceifar a vida, das mais variadas formas, a todos os seus oito rivais na corrida para o trono, antes da morte – causada, segundo a voz dos rumores, por peçonha – do seu primo e cunhado, el-Rei D. João II, cinco anos antes, sem ter conseguido legitimar o filho bastado D. Jorge que, deste modo, nunca lhe poderia suceder. Por isso, D. Manuel I era muito inclinado à astrologia e, para todas as cousas de peso como as viagens do descobrimento das Índias, mandava chamar os seus astrónomos, sobretudo a um judeu de Beja, de nome Abraão Zacut, a fim de saber se lhe seriam propícias. E jamais olvidaria as suas palavras que eram a razão de estar agora ali, a despedir aquela Armada:
– Senhor, olhei mui bem os astros e os planetas e li neles que Vossa Alteza descobrirá e subjugará grande parte dessa Índia, em mui breve tempo, porque, Senhor, o vosso planeta é grande sob a divisa de vossa real pessoa, a esphera, em que se contém os céus e a terra que serão trazidos a vosso poder, cousa que não poderia fazer el-Rei D. João II que Deus tem, inda que todo o seu reino nisso gastara, pois esta empresa está destinada a Vossa Alteza.”
D. Manuel saiu do seu devaneio para atender aos pilotos mouros enviados pelo rei de Melinde nas caravelas de descobrir e recebeu as suas homenagens e despedidas, agradecendo-lhes os serviços prestados e os que ainda iam prestar, auxiliando os pilotos portugueses na navegação desta derrota quase desconhecida.
Por último, entregou ao judeu Gaspar da Gama um alvará de alforria por todo o socorro que dera na Índia ao Capitão Gama – agora Almirante D. Vasco da Gama, títulos aliás bem merecidos! – quando este caíra nas garras do Samorim de Calecut. Assim, por saber falar muitas línguas e pelo seu grande conhecimento daquelas terras, iria acompanhar Pedro Álvares Cabral para o aconselhar em tudo o que houvesse mister. Enquanto correspondia às cortesias dos estrangeiros, revolvia a sua memória, em busca da profecia do Judeu Abraão Zacut sobre a viagem anterior e que se cumprira totalmente:
“– E acho que a Índia será descoberta por dois irmãos, vossos naturais, mas não sei dizer quem são eles, embora saiba que um perderá a vida como paga pelo sucesso da conquista, porém como está ordenado nos céus, Deus vo-lo mostrará.”
Como o astrónomo vaticinara, os irmãos Vasco e Paulo da Gama comandaram a pequena armada que descobrira a derrota para a Índia, a que esta nova e grande armada vinha dar continuidade. E, também como fora anunciado, Paulo da Gama morrera antes de chegar a Lisboa! Os mouros desciam para a praia, precedidos de soldados que abriam caminho à lançada para afastar a multidão que queria ver de perto os homens negros e pardos, luzindo os ricos vestidos de seda e grossas cadeias de ouro que El-Rei lhes dera em paga de serviços.
– Olhai os mouros! Mais parecem príncipes do que pilotos!
– El-Rei dá presentes de oiro aos inimigos da nossa fé, para fazer vista, com os tributos que cobra ao povo...
– Toma tento na língua, que estás a falar traição e inda perdes a cabeça.
Finalmente, quando os últimos batéis, tendo largado a sua carga humana nos conveses, foram içados e amarrados nos navios, os oficiais deram as suas ordens e os homens ocuparam os postos iniciando as manobras da partida. No batel real, enfeitado como uma sala de trono, o Rei Venturoso incomodado pelo silêncio fez sinal aos seus músicos para que tocassem notas vibrantes e festivas e escoltou a sua imponente Armada até à saída da barra, acenando de quando em quando com a mão esguia e branca onde faiscava um magnífico rubi cor de sangue – o frio coração do seu poder.
***
De madrugada, um vento de feição inchou as velas, num estalar de panos como mãos a aplaudir, nos mastros e mastaréus os cordames gemeram como bordões de guitarra numa canção de saudade, bandeiras, estandartes e lenços agitaram-se em frenesim, enviando uma última mensagem. O sentimento dos perigos e da morte, que não deixaria de escolher alguns daqueles homens, cobriu como um negro véu todos os corações e um súbito silêncio desceu sobre a praia e as naus, pesado de agoiros e de lágrimas.
         Os navios da Armada foram-se alongando na distância, diminuindo de tamanho até não serem mais do que pequenas silhuetas, como miniaturas pintadas nas cartas de marear a indicar derrotas, desaparecendo por fim na curva subtil do horizonte.




Cap. III
 O Povo Pardo

          A frota navegava com bom tempo ao longo da costa, desfraldadas todas as velas, rumo às ilhas de Cabo Verde para aí fazer a aguada e seguir para o Cabo da Boa Esperança. A distância segura uns dos outros, os treze navios deslizavam na verde imensidão do mar, deixando atrás de si rastos de espumas e golfinhos. Apenas dez dias de navegação tinham dado a Gonçalo uma ideia do que seriam as penas do Inferno. Por sorte não enjoara, ao contrário de muitos outros aprendizes de navegador que haviam passado a primeira semana de viagem a lançar o estômago pela boca, até não terem mais nada para soltar senão gemidos e suspiros de angústia, fracos como “mulheres paridas” segundo caçoava o Mestre a que se juntavam chistes e graçolas dos matalotes endurecidos por outras viagens.
          A nau capitânia era a maior da Armada e levava a bordo mais de duzentas pessoas  das quais, tirando os principais oficiais, os padres, o cirurgião, os feitores, o barbeiro e os escrivães (com alojamentos, à parte, no castelo da popa), metade era gente do mar e o resto gente de armas, amontoando-se, cada um com a sua esteira e a arca dos parcos haveres, por baixo do tombadilho ou no diminuto espaço deixado livre pela carga de víveres e mercadorias, gaiolas de galinhas, coelhos e carneiros (para serem consumidos durante a viagem), peças de artilharia, forno e tudo o que era necessário para manter a nau em boas condições durante ano e meio. Só conseguia melhor espaço para dormir ou o direito a cozinhar os alimentos crus quem fizesse valer a lei do mais forte. Gonçalo aprendera esta lição logo no primeiro dia.
***
          Após os escaleres os terem despejado na nau, o Mestre, o Contramestre e o Guardião, quase sem os deixarem tomar fôlego, tinham-nos feito alinhar no convés superior à força de ordens berradas, estridências de apitos e palavrões para lhes ensinarem as três leis da marinharia: trabalho, disciplina e obediência. O bom labor seria recompensado com alguns privilégios, as prevaricações punidas com chicote, ferros no porão, trabalho nas bombas ou, em caso de crime de maior gravidade, morte por enforcamento num dos mastros do navio.
          As tarefas mais duras e sujas da nau estavam a cargo dos grumetes que eram pano para toda a obra e o Guardião afiançava-lhes que estaria sempre de olho neles, pois esta era a nau capitânia e não queria ouvir queixas nem censuras de Pedro Álvares Cabral ou de qualquer oficial. Em seguida mandou-os dispersar e ir ver dos “alojamentos” que lhes estavam destinados, onde poriam as trouxas e os baús pouco volumosos.
          Gonçalo tinha sido dos primeiros a embarcar ainda na Ribeira das Naus, no dia oito de Março, passando a sua primeira noite de viagem para o Restelo onde, na manhã seguinte, iria participar na cerimónia de despedida. Vendo-o ferido, o Guardião ordenara ao barbeiro[27] que cuidasse dele e indicara-lhe um lugar de bom resguardo para dormir, onde o grumete se instalara e escondera o precioso documento. Assim, desceu ao tombadilho e retomou o seu posto, estendendo a esteira no chão duro de tábuas. Sentou-se nela e disfarçadamente meteu a mão no esconderijo, sentindo com alívio que não lhe tinham tocado.
– Salta daí, rapazola, que esse é o meu lugar!
         O homem tinha uma cara de salteador de estradas ou corsário, a voz rouca e arrastada era ameaçadora. Trazia um punhal à cintura e a mão pousada no cabo como um aviso. Sempre a lei do mais forte humilhando os fracos? Gonçalo recordou o seu juramento – “Nunca mais!”.
– É meu, desde ontem – respondeu –, que mo deu o Guardião!
        O homem riu, secundado por três companheiros de igual catadura que já tinham tomado outros lugares, desalojando os seus ocupantes mais moços, sem que ninguém ousasse protestar.
       – O gatinho é assanhado, não há dúvida! Esse arranhão na cara, fez-to algum gatarrão pra t’ensinar a respeitar quem manda? Parece que ainda não aprendeste a lição! Salta mas é daí antes qu’eu t’arranque as unhas.
– Só morto! – berrou Gonçalo com fúria.
         – Lá por isso, Assanhado, eu faço-te a vontade.
      O homem, rindo sempre, lançou-lhe a mão ao tornozelo e, arrancando-o da esteira, arrastou-o pelo soalho. A cabeça do moço bateu contra uma trave, atordoando-o.
       – O lugar é do rapaz, o ouviste? Se buscas querela, aqui me tens que sou melhor adversário pra ti qu’um rapazola magricela, mesmo assanhado.
        Mateus! Embora de olhos cerrados e meio desacordado, Gonçalo reconheceu a voz do amigo. O ferreiro pousara a mão enorme no ombro do arruaceiro que se virou em fúria. Fizera-se silêncio sob o tombadilho e todos os olhos se cravaram curiosos e excitados no grupo. Aos dezoito anos, Mateus era alto como uma torre e forte como um touro, por isso, ao ver a cabeça do novo adversário dois palmos acima da sua e uns músculos que pareciam estoirar a camisa, o homem empalideceu e largou Gonçalo que se ergueu ainda tonto; os três companheiros do rufião recuaram.
           – Se assim o dizes… – o sorriso do malandrim era uma careta de ódio – buscarei outro pouso, pois não tenho razão de querela contigo.
          – Busca-o longe daqui e leva os teus amigos, que todos estes postos já têm donos.
         Os quatro desordeiros entreolharam-se e, dando meia volta, afastaram-se remordendo ameaças, sob um coro de risos e palmas dos novatos ao generoso gigante que os defendera.
***
          Navegavam há já treze dias com muito bom tempo, tirando um arreliador dia de calma, a catorze de Março, passado inteirinho sem as naus se moverem, a quatro léguas das Canárias, as ilhas na posse dos reis de Castela, por onde se passava antes de chegar a Cabo Verde. Os matalotes bons nadadores gozaram o seu tempo livre a atirar-se dos barcos para o mar, fazendo apostas e desafios a ver quem dava os saltos do ponto mais alto dos mastros. Gonçalo foi um deles e quase se esqueceu dos músculos doridos e das mãos feridas, ainda mal calejadas, em cinco dias de rudíssimas tarefas, principalmente no manejo das cordas e cabos, empoleirado nos altos mastros num equilíbrio de cegonha, sem olhar para baixo por medo das tonturas que podem fazer qualquer um estatelar-se nas tábuas do convés.
         O pior fora depois dos mergulhos, com a coceira do sal na pele e sem água doce para se lavar, pois a água era preciosa demais para se desperdiçar em lavagens de corpos e de roupa … Mas enquanto durara a diversão... Como Mateus não sabia nadar, ficara a vê-lo da amurada dando palmas e gritos de incitamento sempre que o amigo saltava. No convés, um numeroso grupo pouco amigo de banhos buscava outros prazeres com risos e ditos de “Auga só prós pexes, qu’eu cá nã tenho guelras”, “Hoje nem é dia santo e a Páscoa inda vem longe, “Home encharcado é home resfriado”. Porém, os jogos de azar eram proibidos nas naus e os padres punham-se logo a farejar mal lhes cheirava a jogatina, se viam um ajuntamento de homens sentados a um canto, ouviam brados mais fortes ou escutavam alguma praga mais acesa e os prevaricadores eram logo multados, em dinheiro ou na ração de vinho, quando não sofriam castigo maior em tarefas e trabalhos, sobretudo na nau capitânia.
          – Vamos a uma partida de fito?
          – Outra vez, home?
          – Se caçássemos uma toninha, podíamos fazer uma tourada!
        Era costume, como sabiam os mais experimentados nestas derrotas para África, quando se pescava uma toninha ou um tubarão, quebrarem-lhes os olhos e lançarem-nos no convés, aproveitando os seus saltos e estrebuchamentos para fazer uma garraiada, toureando-os com capas e panos até à morte e mal paravam de se mexer atiravam-se as carcaças de novo para o mar, pois logo apodreciam com o calor e empestavam a nau com o seu mau cheiro.
          – E onde tás tu a ver toninhas ou tubarões neste mar de calmaria, ó Manel?
         E foi então que o marceneiro José Brás teve uma lembrança de truz e, num abrir e fechar de olhos, fez com umas tiras de madeira e uns chifres ocos onde costumava guardar vinho, uma armação em tudo semelhante à de um touro e, encaixando-a nos ombros e pescoço, dobrou o corpo e começou a imitar o bicho, escavando o madeirame do convés e arremetendo contra os homens que fugiam rindo ou volteavam panos vermelhos e pedaços de velame na sua frente enquanto gritavam:
– Eh, touro! Eh, touro lindo!
– Aaah! Ah-aaah! Touro bravo! Olé!
       O bicho corria e tropeçava, enganado pela faena e os matalotes bradavam em coro: Oléeee! Olééééeeeee!
        O Capitão-mor e o piloto Pêro Escobar saíram do castelo da popa, curiosos de tanta grita e arruído e os homens pararam imediatamente, envergonhados, mas Cabral mandou-os continuar com a brincadeira, lançando mesmo um sonoro Olé, a um passe mais valente.
        – Fazei-lhe uma pega de caras – disse um bombardeiro. – Toirada sem uma pega é toirada!
        Mateus tinha deixado a amurada e aproximara-se da arena formada pelo círculo dos marinheiros e soldados. Oito mocetões prepararam-se para pegar o toiro à unha.
– Eh, rapazes, façam-lhe a pega e botem o toiro à auga!
        – Mas o toiro há-de ser aqui o Campanário que tem mais corpo do qu’eu e vos pode fazer frente – e o marceneiro, antes de Mateus ter tempo de reagir, colocou-lhe a armação de madeira nos ombros.
       Divertido, o gigante entrou no jogo, dobrando-se e arqueando o corpo formidável, pôs-se a resfolegar, dando patadas no convés de fazer estalar as tábuas e preparou a investida. Os sete forcados puseram-se em fila atrás do seu caporal que, de mãos na cintura e entesando o corpo provocador, citou o touro:
        – Eh, toiro! Eeeeh, bicho feio! – avançou e recuou uns passos, gingão e desafiador, e citou de novo.
         Via-se que o Barranquenho era entendido naquelas lides e as apostas começaram a subir. De súbito o bicho arrancou em corrida desatada, colhendo o caporal de surpresa e lançando-o pelo ar, ainda agarrado aos chifres que se soltaram com a força do embate, por sobre a amurada de mergulho no mar calmo como um lago. Os restantes sete valentões jaziam num monte, aturdidos e pisados como se uma manada de touros bravos lhes tivesse passado por cima. Pedro Álvares Cabral disse ainda a rir:
         – Desta vez venceu o touro. Guardião, dá-lhe à ceia ração dobrada.
***
          O Assanhado e o Campanário passavam juntos todo o tempo que podiam, partilhando o trabalho e a amizade. Desde a primeira noite tinham ganho o direito às suas alcunhas e nunca mais ninguém lhes perguntara o nome. Campanário assentava como uma luva a Mateus, alto qual torre de igreja e com uma voz a ressoar igual a sino de aldeia. E o nome de Assanhado que o rufião dera a Gonçalo por troça era agora proferido pelos companheiros com respeito, por ele apesar de franzino não se ter acobardado face aos quatro malandrins. Gonçalo pagara a protecção de Mateus cuidando dele durante a primeira semana de viagem, porque o corpulento mocetão… enjoava a cada balanço mais forte do mar, passando o tempo todo na amurada a vomitar as tripas, em arrancos violentos de estremecer a nau, que o deixavam fraco como um menino de colo.
        No Domingo de vinte e dois de Março, tinham ouvido missa rezada pelo próprio Frei Henrique a que assistira o Capitão-mor com todos os oficiais e os servidores da Fazenda d’El-Rei. Com a Quaresma a aproximar-se, os padres rezavam cada vez mais missas e novenas e isso até era bom, porque dava repouso aos corpos cansados e fazia passar o tempo.
        – Terra à vista! – gritou o grumete de serviço no cesto da gávea, com voz esganiçada de entusiasmo. – Terra à vista!
       – É a ilha de São Nicolau, chegámos a Cabo Verde – disse Pêro Escobar, o piloto que mais vezes por ali passara, levando os descobridores em derrotas por ele só desenhadas nas cartas de marear dos seus sonhos de navegador.
        Os homens correram à amurada, falando todos ao mesmo tempo. Iam talvez poder pisar terra firme, pois ali se costumava fazer a aguada, despejar os barris da água choca do calor e enchê-los com a límpida água das ilhas, carregar madeiras e alimentos frescos, enfim, estender as pernas e livrar-se por algumas horas do espaço apertado e malcheiroso da nau.
       O piloto começou a dar ordens e os homens retomaram os seus postos para as manobras da passagem no canal entre as ilhas de Santiago e do Fogo. Quase ao raiar da manhã, um vento súbito e contrário levantou-se, enredando as velas nos mastros e enxárcias[28], de tal maneira que não as podiam baixar. O piloto gritava da proa ordens para o Mestre:
Baixem as driças! Recolham as vergas!
Os marinheiros estremunhados corriam aos seus postos e, sob as ordens do Mestre e do Contramestre, procuravam a todo o custo amainar as velas, mas o pé de vento era fortíssimo e tornava qualquer manobra impossível.
Atenção às outras naus. É preciso manter as distâncias ou ainda nos abalroamos uns aos outros disse o Capitão para o piloto que logo bradou ao homem do leme:
Não percas de vista o resto da frota! Custe o que custar, homem, segue em frente!
         O vento uivava como lobo na serra e os marinheiros aterrorizados viam-se lançados para a frente a dançar nas ondas uma dança de loucos. Rezavam e suplicavam:
Perdoai-nos, Senhor, os nossos pecados!
Senhora dos Navegantes, vinde em nosso socorro! Avé Maria, cheia de graça…
As naus pareciam troços de cortiça lançados numa enxurrada e os homens mal as podiam governar, com o vento sempre a crescer. A pouca claridade da lua, em quarto minguante, fazia-os temer a proximidade das ilhas e as rochas escarpadas do Fogo onde poderiam despedaçar-se. Pedro Álvares Cabral e Pêro Escobar mostravam-se tranquilos e esta sua serenidade foi-se estendendo aos homens que, envergonhados do terror da sua primeira tempestade, calaram as rezas, lançando-se às tarefas com redobrado vigor. Esforçavam-se por manter aceso o facho da nau capitânia a fim de indicar o caminho e a distância aos outros navios, para a frota não se dispersar. Mas era mais um perigo a temer, pois tal ventania podia pegar o fogo à nau.
***
          Era manhã quando o vento acalmou tão de súbito como começara e o Capitão-mor deu ordem para lançar âncora na baía e aí esperar o resto da frota. Uma a uma foram chegando, naus e caravelas, mais ou menos maltratadas, mas nada de tão grave que não pudesse ser remendado na ilha e prosseguir viagem. Todas menos a de Luís Pires, perdida para sempre apesar dos esforços para a acharem.
          – Não há rasto da nau, meu Capitão, não encontrámos nada.
          – Que será feito deles? Uma nau não desaparece assim, sem mais nem menos!
        – É muito estranho, de verdade. Se a tempestade os afundou, mesmo que não ficasse ninguém com vida tinha de haver escolhos, pedaços de madeira, panos, parte da carga...
        – Depois da tempestade, a cerração que desceu sobre o mar não deixava ver nada, nem sequer os lumes de aviso.
        – É cousa rara, não tem dúvida! – e alguns homens persignaram-se como para afastar o azar e o mau agoiro.
Para impedir que receios e superstições se espalhassem pela armada, o Capitão-mor disse aos homens:
         – Por certo se afastaram em demasia ou sofreram algum estrago maior e, com medo de já não nos alcançarem, decidiram volver ao Reino – e deu por terminado o assunto.
Os novatos, passado o perigo, não falavam de outra coisa, contando como tinham sido heróis, ajudando a salvar a nau. Só o Campanário não dera por nada. Enjoado de morte, passara toda a tempestade no porão a vomitar para dentro das gaiolas das galinhas.
***
          O porto da ilha não era grandioso nem sequer muito importante, mas fervilhava de animação graças ao intenso comércio de escravos vindos das terras da Guiné com destino ao Reino e à Europa. A chegada de doze navios para fazer a aguada trouxe ao cais uma multidão incontável de gente, pois ninguém queria perder um acontecimento nunca antes visto.
         – Mas pra onde vai tanta naviarra?
         – Será que vão combater a moirama?
       – A mim, tanto se me dá pra onde vão, desde que desembarquem aqui, pra fazer a aguada e gastar as soldadas.
        – Só pensas em tratos e resgates, home de Deus!
        – E tu? Já aí vens de cestas cheias pra vender e inda falas?
      – Não se amofinem, que chega pra todos. Passarão de mil homens, em tantas naus e caravelas...
      Quando os homens saíram dos escaleres, na praia, foram logo rodeados por gente curiosa que lhes oferecia jarros de vinho e os enchia de perguntas:
       – Eh, amigos, vinde beber um trago connosco e dizei-nos pra onde ides, se vossa derrota não for segredo bem guardado.
       – Vamos até às Índias, a ver das especiarias.
       – Jesus! Viagem comprida e de muito perigo!
      – Levamos embaixada d’el-Rei D. Manuel para o Senhor da Índia.
      – E quem vai de Embaixador?
      – Pedr’Álvares Cabral, fidalgo da casa d’el-Rei.
     Gonçalo e Mateus entraram na Igreja de Nossa Senhora, na praça principal, rodeada de bonitas casas feitas como as de Portugal e rezaram uma oração em agradecimento aos céus por terem sido poupados pela tempestade. O Campanário, ao sentir os pés assentes em terra firme, recuperara logo o apetite e a boa disposição e quisera ir comer marisco ao cais nas tendinhas das mulheres negras.
       Muitos dos companheiros aproveitavam aquelas horas de lazer para comprar produtos frescos, sobretudo nozes de coco que ali eram grandes e baratas e serviam, durante uma viagem assim longa e penosa, de alimento (o delicioso miolo branco) e de refresco (um sumo em tudo parecido com o leite). O calafate Luís Tomé, que Gonçalo conhecera em Lisboa à entrada do armazém da Casa da Mina, juntou-se-lhes enquanto comiam sentados nos rolos de cabos do cais e praticaram animadamente sobre a sua nova vida de mareantes já calejados por uma tempestade.
       Da nau negreira acabada de surgir, tinham aportado os escaleres a transbordar com a negra carga humana: quase nus, imundos e presos uns aos outros pelo pescoço com grossas cordas, homens, mulheres e crianças formavam um rebanho miserável que os contratadores, armados de chicotes, juntavam no cais com gritos e pancada à medida que os batéis os descarregavam. Medo, dor e humilhação, pensou Gonçalo, sempre os mais fortes abusando dos mais fracos! Um dos prisioneiros que vinha apartado dos outros, com correntes de ferro no pescoço, pulsos e tornozelos, foi violentamente empurrado pelos negreiros, mas manteve-se de cabeça erguida, desafiando os algozes.
         – Como é altivo! Talvez seja um chefe ou um príncipe… – exclamou cheio de pena.
      – Pois agora inda é menos qu’ um animal. – e o calafate cuspiu para o chão com desprezo. – É negócio sujo. Os negreiros vão levá-los até ao entreposto onde lhes darão dois ou três dias de repouso e alguns cuidados para poderem ser vendidos a melhor preço.
        Depois de limpos da sujidade e tratados das chagas e doenças apanhadas durante a viagem, por virem amontoados como gado no porão, os arrematantes escolhiam as melhores peças para serem leiloadas à parte ou oferecidas aos clientes mais ricos. Os restantes seriam agrupados em lotes, apartando os maridos das mulheres e os filhos dos pais e das mães, com gritos e prantos de dor e desespero incapazes de comover os corações de pedra dos negreiros. Gonçalo já vira cenas destas em Lisboa e sentira-se revoltado:
         – São seres humanos como nós, Luís Tomé! Porque fazemos isto?
         – Os ricos querem ter quem lhes faça o trabalho e lhes ganhe mor riqueza…
        – Volvamos às naus, que se faz tarde – propôs o Campanário, com um suspiro.
     No caminho passaram pelo Pelourinho, ali posto desde o tempo da fundação da povoação. Suspenso de uma argola de ferro, um negro enorme jazia semi-morto, a pele arrancada pelas cinquenta chicotadas do castigo deixava ver, no dorso em carne viva, os fundos golpes enxameados de moscas.
***
Foi breve a paragem, pois não levavam muito tempo de navegação e o que mais depressa se estragava era a água que ficava amarela, com mau sabor e cheia de bichos, fazendo os homens adoecer de febres terríveis que chegavam a matá-los. Embarcaram algumas viandas frescas, frutos e produtos das hortas que os colonos cultivavam, procurando criar um mundo português nestas ilhas de África cuja natureza indomável parecia querer escorraçar os intrusos. Cabral determinara, por conselho de Pêro Escobar e dos outros pilotos, navegar mar dentro, bem afastado de terra, a fim de evitar as calmarias da Guiné que lhes poderiam impedir o caminho para o Cabo da Boa Esperança. Por isso tinham-se alongado cerca de seiscentas e cinquenta léguas da ilha de São Nicolau e há já um mês que os homens não viam sombra de terra:
         – Tanta água ‘tá quase a dar comigo em doudo!
        – Má hora saí de casa! Antes me queria ver co’a minha mulher a rezingar, do que neste caixão malcheiroso.
        – Ides assi tão fartos em começos de viagem?! Grande conta me dais de vossa fortaleza e ânimo! – O Mestre andava preocupado, pois se já estavam neste estado com apenas mês e meio de viagem, como seria ao fim de seis, oito meses de navegação? – Sois machos de pêlo na venta ou donzelas delicadas?
Entrava-se agora nas oitavas da Páscoa[29] e os padres redobravam de zelo, falando em sacrifício e perdão dos pecados, fazendo confissões e rezas colectivas com todos os homens ajoelhados no convés superior e até uma procissão para acalmar um pouco os ânimos. Mas, mesmo assim, não impediam as rixas frequentes que estalavam entre os matalotes e os soldados, ainda mais impacientes e desesperados por não ser o mar o seu campo de batalha. O trabalho na nau estava a ficar cada vez mais pesado, insuportável. Era difícil manter limpo e habitável um navio com tanta gente e, como não se podia desperdiçar a água doce, usava-se a água do mar para lavar roupas, conveses e porões, todavia o resultado deixava muito a desejar
O porão tornara-se um inferno ou calvário de sofrimento e o Guardião só à força de ameaças e mesmo de pancada conseguia que os grumetes lá entrassem para fazer a limpeza. As fezes e urina dos animais e também dos homens que ali se aliviavam empestavam o ar com um cheiro nauseabundo e o bojo da nau era agora um viveiro de piolhos, pulgas, percevejos, baratas e ratazanas. E, sendo ali o lugar de armazenagem dos víveres, estes começavam a apodrecer e a encher-se de bicharada.
***
Quarta-feira, vinte e dois de Abril, calhara ao Assanhado o quarto de vigia das horas de véspera[30] no cesto da gávea. Era um privilégio ganho por bom comportamento e… por saber ler. Poupara ao Guardião um vexame público, quando ele trocou os caixotes que tinham de abrir e Gonçalo, sem os outros grumetes notarem, lhe leu os dizeres escritos a tinta preta nas madeiras. O homem não esquecera o favor e tomava-o sempre como ajudante nas tarefas que pudessem implicar qualquer sorte de leituras e registos.
          No frágil ninho de cegonha, no alto mastro da nau, Gonçalo entreabria o punho cerrado da sua revolta e deixava respirar o coração, por instantes liberto naquela imensidão, como se estivesse suspenso no ar e o único limite avistado fosse aquela linha infinita onde o verde do mar e o azul do céu se confundiam. Só aí se permitia a ternura da saudade e a memória da mãe. Nesse mês e meio de vida no mar ganhara corpo, com os músculos desenvolvidos à força de lavar conveses, arrastar sacos e caixotes que pesavam arrobas, subir com a agilidade de um macaco às pontas dos mastros para atar e desatar o cordame das velas. E fortalecera o seu espírito e a sua vontade. Fizera-se um homem!
         Tornara-se amigo de alguns soldados e estes, vendo o seu interesse pelas armas, entretinham os momentos de ócio a ensiná-lo a disparar os arcos e as bestas e até o Mestre-de-armas António Ribeiro já o iniciara no uso da espada, muito entusiasmado com os progressos rapidíssimos do seu jovem aluno, dizendo-lhe para deixar a vida parada do mar, mal chegasse à Índia, e se alistar na infantaria que logo haveria de alcançar fama e fortuna. Gonçalo procurava treinar-se no uso destas armas, quando tinha qualquer momento livre, pois queria estar preparado para o que desse e viesse. Nos olhares dos quatro rufiões, a espiá-lo noite e dia, não via só ressentimento pela perda de um lugar para dormir ou raiva por terem perdido a face, havia neles algo de mais ameaçador e perigoso. A cara do Gingão era-lhe familiar, mas não conseguia lembrar-se de quando ou onde o encontrara.
          Na noite da tempestade alguém lhe havia passado revista ao saco e ao lugar onde dormia, porém tendo o cuidado de deixar tudo como estava. Seria a carta de marear o que buscavam? Por sorte, no segundo dia de trabalho na nau, encontrara um esconderijo muito mais seguro para onde tinha mudado o seu tesouro. Com Mateus por perto não se atreviam a tentar qualquer violência contra ele, mas Gonçalo sentia-os à espreita…
         A mancha escura, ao longe, alastrava no mar como uma pequena nódoa de azeite e o grumete quase saltou do cesto da gávea. Era a terra anunciada há já dois dias pelas plantas a boiar e os bandos de fura-buchos a sobrevoar a nau. E logo no seu quarto de vigia! Pôs as mãos em funil diante da boca e soltou a plenos pulmões para o formigueiro azafamado dos seus companheiros de aventura, na tolda, o brado que mais desejara lançar como o corsário dos contos que seu pai lhe contava:
          – Teeeeeeerra! Teeeeeeerra à viiiiiiiiiiiista!
       Foi um rebuliço na nau, de correrias à amurada, gritos e barretes lançados ao ar. Avistava-se já um grande monte e terras de cerradas florestas, bordeando praias de areia muito branca.
– Que terra é esta? É uma ilha ou terra inteira?
– Já muito naveguei e nunca vi tal lugar.
       A mesma conversa tinha o Capitão-mor com o seu piloto, mas Escobar também não sabia a resposta. Cabral mandou fazer sinais às outras naus para lançarem a âncora e convocou todos os capitães e pilotos a conselho. Os escaleres baixaram das naus e caravelas quase em simultâneo, acostando pouco depois à nau capitânia e os oficiais subiram imediatamente a bordo.
         Ninguém reconhecia aquela costa, nem os mais experimentados navegantes, só Duarte Pacheco Pereira, homem de confiança do falecido rei D. João II, não se pronunciou, apesar de todas as missões de descobrimento feitas ao serviço do seu Senhor. Guardava um sorriso misterioso nos lábios. Era, então, uma terra novamente descoberta para a coroa de Portugal!  E apenas a um mês de distância de Cabo Verde, cabendo bem dentro dos limites portugueses do Tratado de Tordesilhas assinado por D. João II com Fernando e Isabel de Castela, em 1494.
          Um milagre da Páscoa, sem dúvida, por isso se haveria de chamar Terra da Vera Cruz e aquele alto cerro Monte Pascoal! Os escrivães registaram a descoberta, os pilotos marcaram a sua posição nas cartas de marear e os homens tiveram uma ração extra de aguardente para festejar o acontecimento. O grumete que avistara a terra, pela vez primeira, receberia mais tarde as suas alvíssaras[31]. Para saber se era terra firme ou uma grande ilha foram cortando ao longo da costa todo o dia, avistando grandes serranias e largos rios, além de formosas enseadas que o Capitão-mor considerou mais seguras para surgir[32] e ao sol-posto fez sinal com um tiro de berço[33] e todos os navios lançaram âncora para passar a noite.
***
          Na manhã de quinta-feira, avistaram muitos homens nus ao longo da praia e Cabral mandou convocou de novo todos os capitães a conselho, sendo de pronto obedecido, com o movimento dos batéis a causar espanto aos indígenas que corriam e gesticulavam, apontando para os barcos e para o céu. Cerca das onze horas, Nicolau Coelho foi mandado a terra no seu esquife a explorar a boca do rio onde tinham ancorado e tentar chegar à fala com os naturais. Quando já estava quase sobre a praia, o capitão viu avançar para o batel um grupo de homens nus, de cor avermelhada, armados de arcos e flechas. Os dez lanceiros e besteiros que levava consigo empunharam as armas prontos a disparar.
  – Andam todos com as vergonhas[34] ao léu!
            – Olhai a cor da pele deles! Sou eu que estou a ver mal ou eles são pardos[35]?
  – Sim, têm a pele avermelhada! Serão gente ou diabos?
        – À cautela, mando já um pró Inferno donde veio! – e o soldado preparou-se para disparar a seta.
           – Quedos! – ordenou o capitão. – Não façais nada que os possa amedrontar.
          E Nicolau Coelho ergueu-se no batel com grandes sorrisos e muitos acenos de cabeça e de mãos, fazendo sinal às criaturas pardas e nuas para pousarem os arcos na praia. Os lanceiros baixaram as lanças e imitaram os gestos do capitão, enquanto os besteiros mantinham as armas apontadas. Os gentios lançaram os arcos para a praia e falaram aos portugueses, todavia nem Nicolau, nem o língua[36] conseguiram percebê-los ou fazer-se entender por eles. Então, o capitão tirou a carapuça e atirou-a ao homem que estava mais perto e dois soldados fizeram o mesmo com um barrete vermelho e um sombreiro preto, logo apanhados no ar por outros dois homens nus com muitos risos e acenos. O primeiro nativo lançou, por sua vez, para dentro do batel o toucado de penas que tirou da cabeça e um fio de continhas brancas. Como não podiam desembarcar por o mar quebrar rijo na praia, Nicolau deu ordem para voltar à capitânia, a fim de fazer o seu relato ao Capitão-mor e a todos os capitães que na amurada tinham seguido o seu feito.
***
          Na manhã de 24 de Abril, como o vento sueste trouxera na véspera fortes chuveiros e quase fizera dispersar as naus, os pilotos aconselharam Cabral a levantar âncora e fazer vela ao longo da costa, a ver se achavam alguma  baía segura para aí surgir e tomar água e lenha. O Capitão-mor concordou e enviou adiante as caravelas pois, sendo mais pequenas, eram capazes de navegar chegadas a terra. Enquanto se afastavam, viram na praia cerca de setenta homens todos nus, sentados perto do rio, muito curiosos e assombrados de ver sair dos ventres de um bando de pássaros gigantes uma gente tão esquisita. As naus seguiram no rasto das caravelas e foram achá-las ancoradas dez léguas mais abaixo, num recife com um bom porto a que o Capitão-mor deu o nome de Porto Seguro e aí amainaram antes do sol posto.
***
          Afonso Lopes, o sota-piloto de Cabral, enviado num batel a sondar a baía para ver até onde a frota podia entrar, voltou à nau com uma boa surpresa para o Capitão-mor.
– Olhai o Afonso Lopes, que boa companha traz!
– Mas vêm pelados, tal qual Deus Nosso Senhor os deitou ao mundo!
– E as mulheres, Afonso Lopes, tamém andam em pêlo, assi, sem tapar as vergonhas?
– Por qu’ é que trouxestes antes mulheres?
– Chegai-vos pra lá, deixai-me ver! Parecem pássaros, assi enfeitados de plumas.
         – Tomai tento – disse o Mestre já cansado de tanta algazarra. – Com tal zanguizarra inda assustais as criaturas.
– Que feios que são, com aqueles ossos metidos nas beiçolas!
        Os dois moços gentios, agarrando-se aos cabos, amarinharam pela nau como se toda a vida não tivessem feito outra coisa. Não pareciam assustados, apenas surpreendidos e maravilhados com tanta novidade trazida por um povo muito estranho, coberto de peles ainda mais raras. Como a multidão o impedia de ver os recém-chegados, Gonçalo amarinhou pelos mastros e socorrendo-se do emaranhado dos cabos que tão bem aprendera a conhecer, passou por cima das cabeças dos companheiros e deu uma das suas ágeis cambalhotas de saltimbanco, vindo aterrar  mesmo aos pés do mais velho dos homens pintados.
        O visitante sobressaltou-se e recuou, mas Gonçalo sorriu-lhe e, antes de alguém o afastar, ofereceu-lhe um aro de latão que o indígena aceitou encantado e logo enfiou no pulso. Afonso Lopes não interrompeu a inesperada cerimónia de boas-vindas, pois era a favor de tudo o que tranquilizasse aquele estranho povo e o moço mostrara ter miolos e sensibilidade. Nesse momento o homem da selva levou a mão à cicatriz no rosto do grumete e tocou-lhe com suavidade. Em seguida tirou o toucado de penas e Gonçalo pôde ver na sua fronte, quase no mesmo sítio, uma cicatriz em tudo semelhante à sua.
         – Ó Assanhado, aí tens o teu irmão gémeo! – gritou um dos soldados, arrancando um coro de gargalhadas em redor.
        Mas o moço nem os ouvia, fascinado por aquele ser tão diferente de si mas ao mesmo tempo… tão parecido. Apesar do osso atravessado no lábio inferior de lado a lado, não lhe parecia feroz nem medonho. Trazia na pele cor de cobre um cheiro misto de floresta e maresia que parecia purificar a nau, um odor de liberdade e inocência. Como se lhe lesse os pensamentos, o indígena tirou do ombro o arco e o carcás com as longas setas e ofereceu-lho, levando a mão à sua própria cicatriz e de novo à do grumete. Guerreiro ou caçador, considerava-o seu igual e Gonçalo sentiu-se orgulhoso pela admiração, embora imerecida, do homem da floresta.
        – Com que então, irmãos de sangue?!
       – Ó Assanhado, pede-lhe pra te levar à caça, a ver se trazes carne fresca que já estamos fartos de biscoito[37].
       – Um tassalho de veado ou porco montês assado vinha mesmo a calhar prá ceia! Mas tamém me contento c’uma lebre ou coelho!
       Afonso Lopes pôs fim à paródia fazendo sinal aos visitantes para o seguirem, pois o Capitão-mor estava pronto para os receber. Cabral, ricamente vestido e adornado com o seu colar de ouro de embaixador, estava sentado numa cadeira alta no centro de uma enorme tapeçaria estendida  diante do castelo da popa, com todos os capitães e principais oficiais da Armada à sua volta, sentados no chão sobre o tapete como se fossem assistir a um sarau da Corte. E Gonçalo, aproveitando a quebra no ritmo de trabalho, pois anoitecia e estavam ancorados num mar sereno como um lago, esgueirara-se para a popa e arranjara um recanto bem perto da cena de onde podia mirar e ouvir tudo sem ninguém dar por ele.
O grumete sorriu ao ver o estranho e cómico quadro. As tochas acesas na coberta faziam sobressair a cor avermelhada dos homens da floresta e as formosas pinturas nas suas peles nuas contrastavam com os pesados brocados e veludos nos corpos suados dos capitães. Gonçalo achava-os magníficos, de corpos perfeitos e sem nenhum pêlo, os cabelos corredios e tosquiados de uma tosquia alta no toutiço, rapados por cima das orelhas, sem barba e as pálpebras e sobrancelhas pintadas de branco, azul e vermelho.
Mostravam-se livres e altivos como príncipes, pois nem saudaram o Capitão-mor nem deram mostras de acatamento ou de temor, mirando aquela coisa nova e formidável que era a nau sem uma palavra. Apenas apontaram para o colar de Cabral e logo para terra, fazendo os capitães murmurarem entre si “Ouro! Ouro! Eles estão a dizer que também têm ouro!” A Gonçalo, pelo contrário, pareceu estarem os nativos a pedir para o Capitão-mor lhes entregar o colar a fim de o levarem a terra, por certo para o oferecer a algum chefe ou deus da sua crença. Mas, como tantas vezes falara seu pai, os oficiais pareciam sofrer da terrível ganância dos homens, levando-os a ver naquilo que é, apenas aquilo que desejam! Os línguas falaram-lhes arábico e várias falas de negros mas não houve qualquer entendimento.
– Mostrai-lhes algumas cousas de Portugal! – disse o Capitão-mor. – E dai-lhes de comer e beber.
Os matalotes espreitavam a cena dependurados dos mastros e alguns deles apressaram-se a obedecer com grandes risadas. Trouxeram um carneiro e os dois homens mal fizeram caso do bicho, porém uma galinha quase os fez saltar pela amurada de tanto medo.
– Nunca viram uma galinha! – e os homens perdiam-se de riso. – São mesmo selvagens!
– Temos muito que lhes ensinar!
Gonçalo deixou o esconderijo, tirou das mãos do marinheiro a galinha a esvoaçar e cacarejar como se estivesse a ser degolada e, aquietando-a com festas e palavras, acercou-se do moço que lhe dera o arco e entregou-lhe a ave com um gesto amigo. Já sem receio, o indígena pegou nela e mostrou-a ao companheiro e ambos a estiveram mirando largo tempo com muito espanto e surpresa. Nesse momento, o pequeno papagaio Almirante, a mascote da nau que raramente largava Gonçalo, veio pousar-lhe no ombro.
Ará! – disse seu novo amigo de pele vermelha sorrindo e tomou a ave nas mãos, acenando para terra como a dizer que ali havia muitas.
A uma ordem de Cabral, os marinheiros trouxeram aos hóspedes pão e peixe cozido, fartéis, mel e figos secos mas eles, mal provavam as iguarias, lançavam tudo fora e não conseguiram comer quase nada.
– Ora bem! Suas Senhorias têm má boca! – disse o agastado cozinheiro que viera espreitar.
– São muito fidalgos! Devem estar mal habituados…
– Desperdiçar é que não! – e um rapazelho enfiou na boca os restos dos fartéis que os gentios tinham lançado para dentro da bacia.
Então o Capitão-mor mandou servir vinho a todos os capitães e aos dois convidados e ergueu-se com muita solenidade para fazer um brinde, levando primeiro a sua taça aos lábios para eles verem como se fazia. Os indígenas imitaram-no, tomando um grande gole e de imediato, com uma careta de nojo, perante o pasmo e horror de todos os portugueses, cuspiram o vinho tinto acertando em cheio na casaca de veludo de Pedro Álvares Cabral.
– Por esta é que o Capitão-mor não esperava!
– Se fosse um de nós… era castigo certo!
– Olhai ao que um home se sujêta por estas terras sem Deus!
– Mas lá que teve graça…
       Muito mareados, os homens da floresta logo se deitaram na alcatifa para dormir. O Capitão-mor, enquanto enxugava a casaca com um lenço, mandou pôr-lhes umas almofadas altas por baixo da cabeça que eles aceitaram, ajeitando-as de modo não quebrar os toucados de penas. Gonçalo veio lançar-lhes um manto por cima e os dois moços daquele mundo novo adormeceram na nau dos conquistadores, confiantes e incautos, como se toda a vida os tivessem conhecido.


Cap. IV
 Uraçá

Sábado de manhã, no dia vinte e cinco de Abril, Pedro Álvares Cabral deu ordens de fazer vela e procurar a entrada do Porto Seguro – o nome dado por todos à belíssima baía daquela nova terra que haviam achado para a Coroa Portuguesa e onde se poderiam bem abrigar mais de duzentas naus – para aí levar os navios e, como as águas eram profundas de cinco ou seis braças[38], lançar âncora a pouca distância da praia.
Os capitães vieram logo ter conselho na nau capitânia e decidiram que Nicolau Coelho, Bartolomeu Dias e Pêro Vaz de Caminha iriam devolver os dois indígenas à praia, com presentes para fazer amigos. Levariam ainda o degredado Afonso Ribeiro, criado de D. João Telo, para ficar na terra a viver com eles, a fim de aprender os seus usos e língua e, também, como os moços selvagens haviam mostrado simpatia por Gonçalo procurando a sua companhia ao despertar, o Capitão-mor deu ordem ao grumete para se juntar ao grupo.
Assim, cada um dos nativos recebeu uma camisa nova, uma carapuça vermelha, um rosário de contas brancas que eles enrolaram à volta do braço como uma pulseira e alguns guizos e campainhas de latão que os encheram de contentamento e todos os portugueses se chegaram à amurada para os ver embarcar e despedirem-se deles, com grande algazarra:
– Adeus, rapazes! Voltem sempre!
– Na próxima visita tragam as vossas irmãs.
         – E as primas também...
Com muita pena de não os poder acompanhar, o Campanário assistiu à partida do escaler, transportando o seu amigo Assanhado para uma aventura digna de um explorador.
        – Vê lá no que te vais meter! E não andes sozinho com eles! – recomendou da amurada.
– Cala-te com isso, home, inté pareces a mãe do rapaz! – caçoou um matalote. – Ele já é crescidote e há-de dar conta do recado.
Quando os batéis chegaram a terra, Gonçalo pôde ver na praia cerca de duzentos homens com arcos e flechas que pousaram logo no chão conforme os portugueses lhes pediam por acenos. Andavam nus, homens e mulheres, mas alguns usavam redes de fio de algodão cobertas de penas de aves de muitas cores. Os dois nativos, mal desembarcaram com o degredado Afonso Ribeiro, começaram a correr pela praia deixando-o para trás sem saber o que fazer. Então Gonçalo, num impulso singular, correu atrás deles, atravessando um rio com água pelas coxas até um palmar onde os seus novos amigos mostravam aos que pareciam ser membros da sua tribo os presentes dos estranhos viajantes vindos nos pássaros gigantes.
O grumete via como os corpos da maioria deles eram quartejados de cores, metade da própria pele e metade tintos de preto azulado ou vermelho, desenhados como tabuleiros de xadrez de bonito efeito. Quase todos traziam os lábios furados, com dois ou três buracos enfeitados de ossos ou pedras de cor, porém isso não os impedia de falar, comer ou beber.
E não tinham um único pêlo no corpo, além dos cabelos da cabeça, muito bem aparados  em redondo por cima das orelhas também furadas, adornadas de grandes arrecadas de osso. Penas amarelas, vermelhas e verdes, coladas com cera e armações de osso, como diademas ou em forma de carapuças enfiadas na cabeça, colares de contas brancas feitas de búzios ao pescoço e uma manilhas[39] de penas nas pernas e nos braços eram toda a sua vestimenta que eles ostentavam com grande galanteria. Afonso Ribeiro apareceu no palmar, acompanhado por um indígena mais velho com o corpo todo cheio de penas, pegadas na pele de tal modo que o faziam parecer um S. Sebastião trespassado por setas.
– Este bom homem condoeu-se de mim – comentou em voz alta – ao ver-me ali especado, feito parvo, sozinho na praia e deu-me agasalho, que os teus amigos, ó Assanhado, não são lá mui agradecidos!
– Deviam estar mortos por contar novas do que viram, pois ainda não pararam de falar! – riu-se o grumete a contragosto.
 Sentia-se pouco à vontade na presença do degredado, um criminoso que certamente cometera um delito muito grave, talvez assassínio, pois fora condenado à morte e só se salvara da forca por se ter oferecido para o serviço nas naus de descobrir, uma comutação permitida por el-Rei D. Manuel. “Até parece que sou melhor do que ele!”, pensou agastado consigo mesmo, “Afinal, partilho da mesma condição de degredo, fugindo como um ladrão!”. Estes degredados eram os primeiros a desembarcar nas terras desconhecidas e muitas vezes deixados aí, com os indígenas, para viver com eles, aprender a língua e conhecer a região. Quando não morriam nestas empresas, ficavam livres e alguns chegavam mesmo a enriquecer, voltando ao Reino ou quedando-se na terra que os acolhera.
– Que estão a fazer os teus dois amigos? – perguntou Ribeiro. – Não gostaram dos presentes que lhes demos?
Ambos os irmãos tinham despido as camisas e tirado os barretes, que logo foram passados de mão em mão e envergados por outros, bem como os guizos e as campainhas. O grumete admirou a generosidade com que estes homens nus partilhavam objectos para eles preciosos e não pôde deixar de pensar na ferocidade dos matalotes portugueses a defenderem os seus pertences mais insignificantes da cobiça dos companheiros da nau.
– Que mãos rotas têm os dois mancebos! – espantou-se o degredado. – Não guardaram nada para eles?
         Gonçalo notou com satisfação que o filho da floresta não se desfizera da manilha de latão que lhe tinha dado na cerimónia de boas-vindas. Nesse instante o companheiro de Afonso Ribeiro fez-lhe sinal e levou-o até junto de um grupo de gentios que se mantinham ao longe, observando. Antes de se afastar o degredado avisou:
– Toma cuidado, pois ainda não sabemos que gente é esta! Não confies demasiado.
O grumete admirou-se por o criminoso se mostrar inquieto por sua causa e lhe dar conselhos, mas não pôde agradecer-lhe nem sequer responder-lhe, porque quatro moças que por ali andavam vieram observá-lo de perto. Eram mais moças do que ele e estavam completamente nuas, trazendo apenas no pescoço muitas fiadas de contas e sementes e à cintura uma espécie de cinto de fios entrançados onde prendiam uma bolsa tecida com continhas de bonito lavor. Atadas nas pernas, logo abaixo dos joelhos, tinham umas ligas feitas de fio de algodão vermelho muito apertadas e as bonitas pinturas dos corpos eram as suas únicas “roupagens”.
Gonçalo nunca tinha visto uma mulher despida (quanto mais quatro de uma só vez!) e não sabia como agir nem para onde olhar. Achava-as formosíssimas e gentis, de corpos redondos e formas harmoniosas, mais belas mesmo do que algumas das suas amigas de Lisboa, com os cabelos muito pretos e compridos, descendo ao longo das espáduas cor de cobre a que o sol dava um brilho macio de veludo contra o fundo denso e verde da selva. Expunham as suas vergonhas com a inocência de crianças e o grumete olhava-as com a admiração de quem contempla uma imagem ou uma estátua de Diana ou de Vénus num jardim.
As gentias rodearam-no e, primeiro com mostras de um certo receio, mas depois cada vez mais confiantes e ousadas, começaram a tocar-lhe nas roupas, apalpando os tecidos, falando e rindo todas ao mesmo tempo. Então, uma delas aventurou-se mais e tomou entre os dedos uma madeixa do cabelo de Gonçalo, fazendo-a brilhar ao sol, com um fulgor de ouro, arrancando exclamações de espanto às companheiras e logo outra estendeu a mão para lhe tocar no peito que a camisa deixava a descoberto e raspou-lhe a pele com a unha, como se quisesse certificar-se de que aquela cor branca era pintada.
O pasmo das moças fez rir o grumete e a gentia, rindo também, com um gesto inesperado puxou-lhe o cordão das bragas que, antes de Gonçalo o poder evitar, lhe escorregaram para os joelhos deixando-o nu. Todos os indígenas o miravam com curiosidade, divertidos e admirados com a atrapalhação do estrangeiro, cujo rubor lhe pintara a cara de um vermelho tão vivo como a plumagem das araras, enquanto procurava subir as calças e atá-las à cintura ao mesmo tempo que afastava as mãos das moças que insistiam em ver se todo o seu corpo tinha a mesma cor branca, sem ser pintado.
Quando finalmente, Gonçalo conseguiu recuperar a dignidade perdida, apertando firmemente na cintura o cordão das bragas e aliviado por Afonso Ribeiro não o ter visto naquela triste figura, o jovem guerreiro que lhe dera o arco apontou para ele e em seguida para a cicatriz, falando sempre, enquanto mostrava o céu e fazia gestos como se imitasse o voo de uma ave e o português ouviu-o pronunciar repetidamente ”Uraçá”[40], apontando de novo para ele. Por certo relatava os acontecimentos da nau, o seu “voo” entre mastros e o salto acrobático que o havia sobressaltado e encantado. O nativo pôs a mão na testa e olhando Gonçalo disse:
– Pahanjara! – e tomando o arco das mãos de um dos companheiros, colocou-lhe uma longa flecha, retesou a corda e lançou-a como um raio. A seta subiu no ar, descreveu uma longa curva e foi cravar-se num coco de uma longínqua palmeira derrubando-o da árvore. Sem se poder conter, o grumete bateu as palmas e gritou entusiasmado:
 – Grande tiro, meu amigo! Digno de Ulisses.
          Sempre gostara das histórias antigas de gregos e romanos e aquela gente nua fazia-o pensar nos deuses do Olimpo e nos heróis da Mitologia. O indígena repetiu, tocando de novo na testa e mostrando o arco e as flechas:
 – Pahanjara.
         Era o seu nome de guerra, ganho seguramente pela destreza mostrada em combate ou na caça. Fez um gesto de assentimento e pronunciou o melhor que pôde:
  – Pahanjara! – e acrescentou: – Senhor do Arco e da Seta! Pahanjara!
        Pahanjara sorriu, contente de se ter feito entender e tocou levemente na testa de Gonçalo, olhando-o interrogativamente.
– Gonçalo! – respondeu alto, sem hesitar, levando a mão à testa tal como lhe vira fazer e repetiu: – Gonçalo.
         Os homens pardos e as quatro moças soltaram grandes risadas e não repetiram o nome. O jovem caçador pareceu embaraçado e o português teve a sensação de que o som do seu nome deveria ser semelhante, na língua nativa, ao de alguma palavra ou coisa pouco bonita ou indigna. Sentiu-se mal e corou de novo, sem saber o que fazer, mas Pahanjara pareceu tomar uma decisão e, tocando-lhe de novo na testa, disse:
– Uraçá! – e repetiu: – Uraçá!
– Uraçá! – repetiram os nativos em coro, sorrindo.
        Gonçalo percebeu que lhe tinham dado um nome mais de acordo com a dignidade de guerreiro ou caçador, um nome de ave de rapina e sorriu de orgulho por ser aceite pelos gentios. Um a um, todos disseram o seu nome e Pahanjara, envolvendo o grupo num gesto circular, concluiu as apresentações:
        – Tupiniquim. – E, abarcando a floresta com outro gesto, acrescentou com grande orgulho na voz: – Tupi-Guarani.
         Clã, tribo e nação? Assim parecia ao grumete pelas histórias de seu pai sobre as tribos selvagens encontradas nas suas explorações.
         – Português – respondeu, com voz de arauto. – Do Reino de Portugal. Na Europa.
      – Portu-guês – repetiu o grupo com uma pronúncia que o grumete achou assaz satisfatória.
        Por acenos, pediu-lhes para o seguirem até aos batéis a fim de ajudarem a fazer a aguada. Ao longe Afonso Ribeiro e o outro grupo de nativos preparavam-se igualmente para atravessar o rio e o degredado acenou-lhe como a dizer que tudo correra bem por aqueles lados e Gonçalo correspondeu ao gesto antes de se pôr a caminho com os novos companheiros.
***
           Na capitânia, Mateus estava preocupado e procurava manter debaixo de olho os quatro rufiões que metera na ordem no início da viagem. Aparentemente os meliantes tinham-nos deixado em paz, guardando as distâncias e evitando os dois companheiros, no entanto, o Campanário sabia que aquilo não ia ficar assim, até pela maneira como os via a espiá-los e a segui-los de longe, especialmente ao amigo. Apanhara-os juntos, em ar de conspiração, a quando da partida dos escaleres e eles dispersaram imediatamente ao vê-lo, não sem antes Mateus ter ouvido o chefe dizer entre dentes “Às vésperas, aqui mesmo!”. Que tramariam os maraus? Tinha de o descobrir a todo o custo, pois o amigo podia correr perigo.
          Por isso ali estava havia mais de uma hora, com o corpo enorme estirado dentro do batel que não fora arreado e junto do qual vira os malandrins a conspirarem. Parecera-lhe o melhor esconderijo, este escaler suspenso dos cabos acima das cabeças dos homens, pois, dado o seu tamanho, Mateus dificilmente conseguiria passar despercebido em qualquer outro lugar. Porém já começava a dizer mal da vida, sentindo cambras em todos os músculos do corpo, por não se poder mexer com medo de denunciar a sua presença e por momentos pensou se os ouvidos o teriam atraiçoado, quando a sua perseverança foi recompensada ao ouvir passos e vozes por baixo do escaler:
          – Não há meio de o encontrar!… Onde diacho meteu esse ranhoso a carta de marear?
          – Já vasculhamos por toda a nau... e nada!
         – Temos de o apanhar e em breve! – era o chefe que falava, Mateus reconhecia a voz arrastada, sinistra, do meliante. – O Capitão-mor vai mandar para Lisboa a naveta de mantimentos com a nova do achamento desta terra e nós temos de ter o mapa nessa altura, para o entregarmos ao Castelhano.
         – Mas, chefe, nem sequer podemos espremer um bocado o rapaz, pois por onde quer que ande o Assanhado, sempre o cabeçudo do Campanário está por perto!
         Cabeçudo?! Ele lhes diria quem era o cabeçudo, quando lhes deitasse as mãos e lhes desse com as cabeças contra o casco da nau! Sentia-se ferver mas, por ora, tinha de sufocar a raiva e continuar a ouvir a tramóia, muito quietinho, pois quem espera sempre alcança.
         – Ainda estamos a tempo, sossegai. E, agora, pensai numa coisa… quanto não dará o Castelhano por uma carta de marear com a derrota e informações desta terra nova? Se lhas levássemos, matávamos dois coelhos com uma só cajadada e recebíamos a dobrar! E desses dinheirinhos, Afonso Freire não verá nem um real, pois o negócio não entrou no contrato de Lisboa e já muita sorte tem ele em o livrarmos do enteado.
          Mateus quase gritou de fúria e revolta. Traidores! Vendidos! Roubavam os segredos do Reino e davam-nos de mão beijada aos espiões de Isabel de Castela a troco de algumas moedas de oiro! Para esta ralé o baraço e o cutelo não bastavam, deviam sofrer tratos na roda e serem decepados e esquartejados. Vilões! Quem lhe dera poder pôr-lhes as mãos em cima!
        – Não será muito difícil entrar no castelo da popa, nos aposentos dos pilotos e do sota-capitão, para lhes caçar uma carta de marear. Com tantas novidades e medições, a toda a hora anda gente a entrar e a sair de lá, assi, mais um, menos um não deve fazer grande diferença…
      – Tens razão, é só esperar um momento de feição. Mais perto da partida para não corrermos o risco de sermos descobertos.
        – Depois será fácil livrarmo-nos dos rapaz e se o amigalhaço souber alguma cousa…
       – Esse não perde pela demora! – O chefe dos rufiões não esquecera a humilhação por que o gigantesco moço o fizera passar ante os grumetes e nesse mesmo dia jurara vingança. Havia tal ódio na sua voz que Mateus, apesar de corajoso, sentiu um arrepio.
         – Assi é qu’é falar! – apoiou o outro com um riso de gozo,
        – Mas, agora, toca a andar – retomou o chefe –, antes de alguém desconfiar, sobretudo esse Campanário que já não vejo há horas e isso cheira-me a esturro.
         – É mesmo! – a voz do homem tremeu de susto e Mateus, no seu esconderijo, não pôde deixar de sorrir, apesar das dores do corpo, por ver como lhes fazia medo. – Por onde andará?
      – Procurai-o por toda a nau, se preciso for! Não podemos perdê-lo de vista, pois é perigoso e pode deitar tudo a perder. E ala que se faz tarde!
        Mateus ouviu os passos a afastarem-se. Então era este o plano dos patifes, de peito feito com o padrasto de Gonçalo, o traidor-mor em toda a tramóia?! O seu pressentimento fora verdadeiro, o amigo estava mesmo em perigo e pelos vistos também ele andava debaixo do olho dos assassinos. Agora, tinham dobradas razões para estarem alerta a prever-lhes as jogadas, mas para os denunciarem tinham de os apanhar com a mão na massa e diante de testemunhas e isso parecia impossível, pois o chefe da quadrilha não era novato no crime para cometer erros. Deixou o duro esconderijo do esquife, ainda mais preocupado do que antes.
***
          Os nativos tinham seguido Uraçá até à praia e todo o dia andaram num vaivém a trazer cabaças de água fresca para os estrangeiros. Tomando alguns dos enormes barris que Nicolau Coelho levava, foram enchê-los ao rio, transportando-os de novo aos batéis, recebendo por pago cascavéis[41] e manilhas de latão. Não se mostravam esquivos, embora não entrassem nos esquifes, nem procuravam fazer qualquer dano aos portugueses entretanto desembarcados, andando junto com eles, dando mesmo os seus belos arcos negros e flechas emplumadas em troca dos sombreiros e carapuças dos matalotes. Bartolomeu Dias deu ordem a alguns homens que se mantinham nos escaleres para levarem os barris vazios até ao rio e aí os encherem de água pois assim que volvessem com eles à praia, terminaria a aguada e regressariam às naus, mas recebeu um coro de protestos assustados:
         – Mas, mê capitão, os selvages são mais qu’as moscas em mercado de pêxe!
        – Inda nos matam no rio quando estivermos longe das vossas vistas!
       – E muitos têm as setas ervadas[42]. Se nã morrermos do golpe morremos co’a peçonha!
       – Só vamos se levarmos os besteiros para nos acobertarem.
      – Não – disse Nicolau Coelho preocupado, pois os homens assim tão pouco tranquilos podiam fazer alguma asneira ou gesto precipitado que agastasse ou provocasse os gentios.  – Nada de armas, para eles não pensarem que temos medo ou os queremos atacar.
      – Sem dúvida! – confirmou Bartolomeu Dias, com autoridade. – Isso é que os poderia levar a lutar connosco. Vamos acenar-lhes para que se afastem e nos deixem sós.
      Começaram a acenar-lhes para que se fossem embora e eles obedeceram de boa vontade, passando além do rio e deixando o caminho livre para os estrangeiros irem encher os barris. Porém, quando os batéis estavam prontos para regressar às naus, acenaram a Bartolomeu Dias para esperar e mandaram embora Afonso Ribeiro que procurava acompanhá-los e passar a noite em qualquer aldeia para saber como viviam.
       – Não me deixam segui-los, meu capitão, por mais que eu insista e finja não perceber, afastam-me sempre e trazem-me à praia.
       – Mas eu preciso de saber mais coisas e não entendo nada da berberia que falam – disse Pêro Vaz de Caminha preocupado. – Estou a escrever uma carta a el-Rei nosso Senhor, sobre achamento desta nova terra e preciso de mais informações. Como é que eles vivem? Em aldeias ou no mato? Que comem? Há ou não ouro e prata na terra?
        Gonçalo hesitou, olhando o capitão que compreendeu a muda pergunta e lhe fez um gesto de assentimento. O grumete tomou das mãos do degredado a bacia pequena com três carapuças para dar de presente a algum chefe local e foi colocar-se junto de Pahanjara que não o afastou. Fazia parte da tribo, pensou de novo com orgulho e também divertido com o espanto dos seus companheiros:
– Ó Assanhado, a ti nã te mandam embora? Qu’é que lhes deste em troca?
– Vê lá se te cortam a gorgomileira durante a noite!
– E deixa as mulheres deles em paz, ouviste?
       – Volveremos de manhã, pelas dez horas – avisou ainda Bartolomeu Dias. – Vem ter connosco aqui à praia.
        Ouviu os chistes e risos dos matalotes e soldados enquanto os escaleres se afastavam, depois seguiu no rasto de Pahanjara e da tribo que penetravam na densa floresta.
***
          Nessa tarde, o Campanário foi num dos batéis que acompanhavam o do Capitão-mor e todos os outros capitães das naus nos seus esquifes, em passeio pela baía, ao longo da praia deserta. Mateus estava roído de cuidados por causa de Gonçalo que não só corria perigo de morte na nau, como ainda tinha sido levado por uma tribo de selvagens para o mato. Ele não era degredado para ter de arriscar a vida nessas tarefas de exploração, como é que o capitão Bartolomeu Dias, de quem a sua tripulação dizia maravilhas, consentira em tal coisa?
           Queria ir a terra procurá-lo e arrancá-lo das mãos dos homens pardos, nem que fosse à paulada, mas por azar seu o capitão Cabral não deixou ninguém desembarcar na praia, preferindo ir folgar num grande ilhéu, no meio da baía, onde os nativos não podiam chegar e ali estiveram durante uma hora, até ao pôr-do-sol. Os companheiros viam o seu desassossego e tentaram animá-lo:
         – Nã te rales, home, que estas criaturas nã são maldosas e nenhum dano hão-de fazer ao Assanhado!
      – Atão nã viste como os dois que estiveram na capitânia gostaram do moço? Até trocaram presentes e andaram todo o dia juntos!
        – Isso podia ser só pra ganhar a confiança dele e lhe tratarem da saúde mais tarde... Se lhe acaecer alguma cousa, o capitão Dias é o culpado e eu lhe direi das boas! – ameaçou Mateus, cheio de angústia.
       – Nã t’apoquentes! Vais ver como ele aparece aí amanhã, fresco que nem uma flor e inda se há-de rir de ti e dos teus medos de mãe galinha.
       O ferreiro, agastado, afastou-se deles para não ouvir mais consolações e foi sentar-se na extremidade do ilhéu, a fim de vigiar a praia e a selva onde desaparecera o amigo. Olhava ansioso para a floresta, lá ao longe, prestes a dar aviso no caso de Gonçalo vir ter ao mar, fugindo dos emplumados, todavia, sem se condoer do seu desespero, a praia permaneceu deserta até ao momento de volverem às naus ao sol posto. 


Cap. V

 A Rede de Dormir

          Pahanjara apontou e disse:
Taba – e repetiu: – Taba. Tupiniquim.
       A povoação! Distava cerca de légua e meia do mar, com uma paliçada a toda a volta para a proteger dos animais selvagens ou talvez do ataque de alguma tribo inimiga, pensou Gonçalo. Começara a anoitecer e alguns caçadores soltaram de longe gritos altos e agudos, fazendo acorrer inúmeros velhos, mulheres e crianças a saudarem-nos com muita festa e prazer, para logo rodearem o português cheios de admiração e curiosidade por aquela criatura tão branca, de cabelos cor do pêlo da onça malhada e coberta de muitas estranhas peles.
         Enquanto entravam no recinto da aldeia, Pahanjara falava-lhes na sonora mas doce língua nativa, dizendo várias vezes o nome de Uraçá. Contava a sua história e, pelos rostos encantados dos ouvintes, Gonçalo percebeu que o jovem caçador estava a alindar o conto com as cores vivas da sua fantasia. Uma menina ofereceu-lhe um cágado e Jabuti, sorrindo, informou:
          – Jabuti. – E apontando para ele próprio repetiu com um riso feliz: – Jabuti.
        O nome do irmão de Pahanjara era Cágado! Procurou não se rir e fez uma festa ao bicho, devolvendo-o à criança que lhe segurou a mão e se pôs a caminhar a seu lado.
        – Suiriri – disse ela e, tal como vira fazer a Jabuti, apontou para uma árvore onde uns pássaros pequenos tinham os seus ninhos e se desafiavam em trinados lindíssimos.
         Chamava-se, pelos vistos, Suiriri e Gonçalo percebeu que toda aquela gente tinha nomes de alimárias, aves, peixes, plantas, flores, objectos e armas, numa harmonia perfeita com a natureza que lhes dava tudo.
         A aldeia era vasta, com dez cabanas tão compridas como a nau capitânia, feitas de longas tábuas de madeira e cobertas de folhas e ramos de árvores, dispostas em volta de uma enorme clareira. Pahanjara e Jabuti conduziram-no a uma das casas e ambos disseram “Oca”, à entrada. “Casa” traduziu mentalmente Gonçalo. Os dois moços, hóspedes por uma noite do Capitão-mor, davam-lhe o mesmo tratamento por eles recebido na nau, fazendo o que Uraçá fizera quando lhes mostrara o grande pássaro de madeira dizendo ao mesmo tempo os nomes das coisas que iam vendo.
       A cabana, de grandes dimensões, formava uma única sala com duas aberturas baixas, uma em cada extremo, e muitas colunas de pau, entre as quais estavam pregadas pelas pontas, a boa altura, cerca de quarenta redes de algodão (vinte de cada lado) que lhes serviam de leito e deixavam um caminho aberto pelo meio da casa para todos se servirem, como num dormitório ou coxia de galé. No chão, sob as redes de dormir, havia fogueiras para se aquecerem e cozinharem os alimentos, tarefa em que se ocupavam várias moças e mulheres quando Gonçalo entrou.
        Uma anciã retirava de um comprido tubo de cana uma massa branca e húmida que lançava num alguidar de barro posto sobre o fogo onde a revolvia continuamente até a massa perder toda a humidade e ficar feita em pó. Três moças tomavam essa farinha e amassavam-na com água, fazendo bolos muito alvos que embrulhavam em folhas de palma e punham a cozer nas cinzas incandescentes da fogueira. Interromperam a tarefa ao verem entrar o estrangeiro, mudas de espanto. As narinas do grumete colheram um odor de pão quente e a saudade da mãe e da sua vida perdida doeram-lhe mais fundo.
           Jabuti chamou:
         – Igapê! – uma jovem ergueu-se com um cesto de bolos nas mãos e, acercando-se de Gonçalo, apresentou-lho para que se servisse.
         O moço sentiu a garganta seca e o coração bateu-lhe mais apressado no peito, quase a sufocá-lo. Que formosa era, a donzela cor de cobre, com a longa cabeleira negra a cobrir-lhe o corpo nu como um manto sedoso e brilhante! Os olhos negros, suavemente amendoados pareciam engolir a luz para brilharem mais intensos ao fixarem nele as suas pupilas cheias de inocência e serenidade. Jabuti e Pahanjara sorriram ao gesto de boas-vindas da irmã para que o hóspede estrangeiro se sentisse como em sua casa e o grumete aceitou um pãozinho quente e macio, curvando-se graciosamente ante Igapê que o olhava sem disfarce nem malícia, antes cheia de curiosidade e de assombro, sorrindo-lhe também e retornando em seguida à sua anterior tarefa.
           A pouco e pouco os caçadores e pescadores da tribo foram chegando, alguns trazendo os filhos de seis ou oito anos às costas e, saudando os presentes ou retribuindo saudações, iam acomodar-se em volta das fogueiras, formando pequenos grupos. Eram cerca de quarenta pessoas, sem contar as numerosas crianças e deviam constituir as várias famílias do clã de Jabuti e Pahanjara. Os dois irmãos levaram Gonçalo até onde estava um velho, com o rosto coberto de rugas e de cicatrizes, acocorado junto do fogo, a chupar o fumo de um rolo de ervas secas com uma ponta em brasa, lançando no ar um cheiro adocicado e intenso.
           – Jacaúna – anunciou Pahanjara, num tom respeitoso que o grumete ainda não lhe tinha ouvido.
           – Jacaúna. Pajé! – acrescentou Jabuti, no mesmo tom, apontado para o colar de ossos que o ancião trazia ao pescoço.
          – Ere iobê[43]? – perguntou o ancião, mirando com pasmo e alguma perturbação o estranho hóspede que seus filhos lhe traziam.
           – Pa-aiotu[44]. – sussurrou Pahanjara por trás do seu novo amigo, fazendo-lhe sinal para que repetisse.
          – Paai…otu! – imitou o grumete o melhor que pôde.
          – Auge-bê – concluiu o ancião a saudação ritual e perguntou: – Marapê derere[45]?
         Pahanjara respondeu por ele: – Uraçá.
        Um Pajé era certamente um feiticeiro, a julgar pelos ossos e outros amuletos de pedras, conchas e plumas depositados numa esteira perto dele. Parecia ser o chefe da família e mesmo do Clã, pois todos o saudavam com respeito e tanto os caçadores como os pescadores vinham oferecer-lhe um quinhão das suas presas. Gonçalo entregou-lhe a bacia com os barretes vermelhos e o feiticeiro aceitou o presente com um gesto de agrado, lançando de imediato as suas conchas e contas para ouvir as vozes dos espíritos e saber  se o estranho guerreiro branco vinha de coração puro ou era seu contrário. As pedras desenharam sobre a esteira o padrão do amor e da generosidade e o ancião sorriu-lhe tranquilo.
      A mulher idosa, que seguira atentamente a cerimónia, começou a dar ordens a três companheiras mais novas que se apressaram a obedecer. A mais moça trouxe-lhe uma rede de algodão que ela pendurou em lugar de honra, perto da fogueira do Pajé, acenando ao hóspede como a dizer-lhe que era sua; as outras duas mulheres azafamavam-se na preparação da comida e Gonçalo percebeu, escandalizado, que o chefe tinha quatro esposas! E não parecia ser o único, a julgar pelo que o grumete via junto a outras fogueiras da cabana.
         O ancião sentou Gonçalo a seu lado, com os filhos e os pretendentes de Igapê à sua volta e Pahanjara contou de novo a história do forasteiro, todo cheio de gestos e entoações de voz. Outros homens e mulheres vieram acocorar-se junto à fogueira e o silêncio desceu na oca para ouvir o conto daqueles que tinham estado no ventre do Grande Pássaro de madeira e asas brancas e haviam voltado vivos para contar a sua Marandúba[46], trazendo um dos emboabas[47] com eles.
Jacaúna tomou das mãos da mulher mais velha que o servia a sua cangoeira de fumo acesa – um canudo feito de folha seca de palma com umas ervas lá dentro – e Gonçalo viu horrorizado como ele metia a ponta acesa na boca, sorvendo o fumo grosso que logo lhe saía pelo nariz como por uma chaminé. Então, para seu maior horror e desespero, a mulher do Pajé recebeu das mãos do marido o rolo incandescente da erva-santa e ofereceu-lho, com o respeito devido a um hóspede que se quer honrar.
O grumete sabia que não podia recusar a oferta sem correr o risco de ofender aqueles que o recebiam com a cortesia de fidalgos. Como Uraçá, tinha de acatar os seus costumes e cumprir com os rituais da tribo…mas aquele canudo aceso parecia-lhe cousa do diabo, para o fazer arder nas chamas do Inferno! Contudo, jamais faria uma desfeita aos dois irmãos, a olharem-no cheios de orgulho pelas atenções que o amigo, ainda tão moço, estava a receber do poderoso feiticeiro e, assim, com mil cuidados para não queimar os lábios e a língua, meteu a ponta em brasa na boca e fechando os olhos aspirou com força. Um fumo grosso e áspero entrou-lhe pelas cachagens[48] e goelas, saindo-lhe em fúria pelas ventas, fazendo-o cuspir o tição e sufocando-o de tosse e aflição, as lágrimas a escorrerem-lhe dos olhos, por entre os risos divertidos, embora discretos, dos nativos. Quando a tosse e as lágrimas acalmaram, a cangoeira foi passada a outro e Gonçalo pode respirar aliviado.
Aproveitando a pausa na conversa causada pelo cómico incidente, as mulheres do Pajé trouxeram vasilhas para todos, pondo diante do hóspede, sobre esteiras de palma entrançada, muitas bacias com pedaços de caça, pastéis de milho com carne picada envoltos em folhas de palma, pedaços assados de uma raiz chamada mandioca e outras a que davam o nome de batatas, favos de mel e frutos (sobretudo uns que Gonçalo achou muito bons, parecidos com o pepinos mas de casca amarela em cachos de vinte ou trinta). Havia também muitas cuias ou cabaças pequenas com vinhos feitos de raízes e de frutos. Gonçalo, farto das rações estragadas da nau, comia de tudo e de tudo gostava. Viu-se um pouco atrapalhado com os pastéis, mas Igapê, a formosa irmã dos seus amigos, abriu-lhe o delicado embrulho de folhas, oferecendo-lhe o delicioso recheio na palma estendida da sua mão.
Depois, na noite de lua cheia (morna e doce como uma noite de Agosto em Lisboa), no grande largo da ocara[49], os mancebos e as moças solteiras da oca de Jacaúna, com os rostos e os pés pintados de tinta vermelha, ostentando os seus melhores enfeites de penas e de conchas, fizeram as suas danças, a que se juntaram gentes de outros clãs para festejar o hóspede. Todos nus, muito juntos e dispostos em roda, ao som de tamboris, flautas, matracas e cabacinhas ocas com sementes, batendo no chão com um só pé, giravam e serpenteavam pela aldeia, entrando e saindo das casas, um cantor dando o mote de improviso e os outros respondendo. O grumete achava a música agradável e o ritmo forte e, quase sem dar por isso, os seus pés começaram a bater no chão. Igapê, cantando, desafiou-o para a roda e Uraçá, estonteado pelo licor, pela erva-santa e sobretudo pela beleza da cantora, seguiu-a imitando-lhe os passos, numa cadência oscilante de pêndulo, ao ritmo batido do tamboril.
***
Gonçalo sentia o calor, os fumos das fogueiras e o rescaldo da festa a abafarem-no e saiu da oca para respirar, desejoso de despir a camisa e as bragas e ficar em pêlo como os nativos que se estiravam nas redes, sós ou acompanhados de suas mulheres. Era a hora de dormir. Porém, ouviu risos e apercebeu-se dos movimentos de corpos jovens a esgueirarem-se por entre as cabanas, saindo da paliçada e a correr para a selva. Um suave sopro na nuca fê-lo voltar-se em sobressalto e corou ao ver o gentil rosto de Igapê. A lua parecia pôr reflexos de prata na pele acobreada e Gonçalo, sentindo o sangue a latejar nas veias, admirou extasiado o corpo nu da menina-mulher.
A moça, sorrindo, inclinou-se para ele a franzir o nariz no gesto de quem cheira e logo fazendo uma careta de mareio. Não precisou de repetir a graça para o grumete se aperceber, envergonhado, de que fedia a ponto de empestar o ar. Passara um mês numa nau, sem se poder lavar, fazendo trabalhos pesados e sofrendo dias de calmaria que só os banhos de mar tornavam suportáveis mas deixavam os corpos e o fato, depois de secos, a tresandar a peixe podre. Devia ter um cheiro nauseabundo que os seus companheiros de viagem só não notavam… por cheirarem ao mesmo ou ainda pior! Porém aqui, no meio dos bons odores da floresta, o seu corpo empestava como o de todos os portugueses e se calhar essa era uma das razões por que os nativos não se chegavam muito a eles. Olhou para ela e fez um gesto de vergonha como quem se desculpa.
          A jovem tomou-o pela mão e levou-o consigo para fora da paliçada, penetrando na selva. A lua era um farol a iluminar a noite, mas mesmo assim Gonçalo arrepiou-se de medo com a sensação de olhos rapaces a espiá-lo, enquanto atravessava uma invisível mas espessa cortina de rumores, sussurros e gritos desconhecidos  e só sossegou ao ouvir risos e som de água ali perto. A nascente formara uma lagoa na clareira da floresta e ele viu grande número de moços e moças da tribo, todos nus, a mergulharem nas frescas águas, brincando e nadando como golfinhos.
         A filha do Pajé falou-lhes, provocando grande risada entre eles e, subitamente, Gonçalo sentiu-se levantado no ar por dois fortes mocetões que lhe arrancaram a camisa, as bragas e as ceroulas (desde o dia em que as descaradas nativas lhe tinham despido as calças, passara a usar sempre ceroulas por baixo) e o lançaram de golpe para dentro de água. Dominou a aflição ao ser engolido pela lagoa, contendo a respiração e deixou a frescura das águas mordiscar-lhe a pele eriçada de excitação.
         Mal veio à superfície, viu Igapê formar um gracioso salto e mergulhar a cerca de quatro metros do sítio onde ele se encontrava, para reaparecer alguns minutos depois e nadar na sua direcção. Outros nadadores se acercaram para incluírem os dois jovens nos seus jogos e brincadeiras. Pareciam-se com Adão e Eva sem pecado, antes de serem expulsos do Jardim do Paraíso, os corpos tocando-se com a inocência e a liberdade dos seres puros da floresta. Gonçalo mergulhou no encalço de Igapê e, ao alcançá-la, pôde finalmente esquecer a sua dor.
Quando, cansados e arrepiados, saíram da água e a moça lhe esfregou o corpo com uns tecidos macios, feitos de uma qualquer fibra de árvore ou planta, que alguém deixara sobre as pedras em troca da sua roupa suja, Gonçalo disfarçou o enleio e entregou-se ao prazer dos seus gestos. Estenderam-se em seguida sobre a espessa camada de folhas que cobria o chão da floresta e Uraçá avistou, à sua volta, pequenos grupos a conversar e a rir, assim como algumas parelhas dispersas trocando carícias e palavras de amor, como em qualquer outra parte do mundo.
          A seu lado, qual ninfa saída das águas, a irmã de Pahanjara era uma tentação e Uraçá gostaria de saber falar a sua língua para lhe dizer as doces palavras de ternura e admiração que lhe enchiam a alma. Todavia, se não podiam compreender-se na fala, talvez pudessem entender-se por meio do canto, indo a música mais longe do que os gestos, pois vira pouco antes na aldeia como este povo gostava de cantar e dançar e como a bela nativa soubera chegar ao seu coração pela melodia e cor da sua voz. Soergueu o corpo contra a lua, pondo sombras no rosto de Igapê e o seu canto rasgou a noite em mágicas vibrações, louvando a beleza dos olhos negros, o sorriso gracioso, a doçura dos seus lábios.
           A filha do Pajé era cortejada pelos mais audazes e valorosos mancebos não só da sua taba como das de outras terras aonde a fama da sua beleza havia chegado e alguns deles quase tinham logrado tocar-lhe o coração e mesmo alimentar-lhe os sonhos de menina. Mas nenhum deles fora capaz de lhe fazer vibrar a alma e o corpo e de lhe aquecer o sangue nas veias a ponto de lhe queimar a pele, como a voz e o olhar do emboaba de cabelo dourado que viera de um outro mundo (quem sabe se enviado por Tupã?), para lhe trazer a vida ou a morte num afago dos seus dedos e dos seus lábios. Mas isso deixara de ter importância, pois Igapê já não era senhora do seu coração, caído na teia daquele misterioso canto que ousava despertar os ecos mais profundos e ocultos da floresta.
        Fizera-se silêncio na clareira, apenas perturbado pelos movimentos leves de quem escuta, mal ousando respirar para não quebrar a magia. Os filhos da floresta não conheciam os sons estranhos, porém captavam a emoção e o amor na voz do estrangeiro e sentiram  prazer e ciúme por verem que era Igapê, a mais bela flor da sua tribo, a causa de tal feitiço.
***
           Na oca já todos dormiam e a filha do Pajé guiou-o, à luz fraca das fogueiras, até à rede suspensa entre duas colunas e Gonçalo deu graças a Deus por a bendita obscuridade não deixar que o vissem nu. Não encontrara a roupa ao sair do banho, nem conseguira que a moça lha devolvesse – parecia ter levado sumiço para sempre! – e não tivera outro remédio senão voltar em pêlo para a aldeia, procurando esconder as suas vergonhas, como Adão, com uma folha de palma. Tentando apanhar o jeito ao estranho objecto de dormir, subiu a medo e conseguiu estender-se na rede que pareceu envolvê-lo como uma teia. Afinal era fácil! Procurou uma melhor posição e a rede rodou imediatamente sobre si mesma, cuspindo-o para o chão com um rebuliço que arrancou alguns protestos ensonados aos companheiros de dormitório.
           Igapê, contendo o riso, voltou para junto dele e ajudou-o a subir de novo para a rede e a acomodar-se no inconstante objecto. Depois tocou-lhe levemente na cicatriz, com muita ternura e Gonçalo procurou segurar-lhe a mão e afagar-lhe o rosto. A rede estremeceu, volteou e catapultou-o outra vez contra o solo, com maior estrondo e mais protestos, agora já agastados. O grumete preparou-se para dormir no chão, embora receasse as cobras (eram bastas e bem peçonhentas naquela terra!), mas ela não consentiu, dando-lhe a entender por gestos que havia uma outra maneira de dormir no leito oscilante.
       Num movimento fácil e gracioso, deitou-se na rede onde se acomodou em perfeito equilíbrio, ajudando em seguida Uraçá a subir para o seu lado. Então a formosa moça, de corpo acobreado e a cheirar a baunilha, abriu-lhe os braços e neles o grumete se refugiou como num porto seguro, com o coração a pulsar de gratidão e de ternura. Igapê ajeitou-se melhor, cingindo-o num terno abraço e a leve teia de algodão envolveu-os, por fim, com a suavidade quente e macia de um casulo.
***
Os sons pouco familiares da oca fizeram-no despertar do profundo sono em que mergulhara na mágica noite de lua cheia. A filha do Pajé dormia ainda, com a cabeça encostada ao seu peito, o belo corpo de adolescente recortado nas sombras pelo brilho vermelho e quente da fogueira.
Gonçalo não sabia como lidar com as novas sensações e sentimentos descobertos desde que aportara àquela terra e conhecera um povo pardo e nu a viver como Adão e Eva no Paraíso. E a formosa filha da floresta, dormindo confiante nos seus braços, numa noite desfizera com as suas carícias os nós da revolta, do ódio e do medo, reabrindo no seu coração o espaço da ternura e do amor. Igapê espreguiçou-se, sonolenta, fazendo-lhe lembrar uma onça, o esplêndido gato de pêlo dourado que avistara na selva. A moça sorriu-lhe e, num movimento ágil, fazendo oscilar perigosamente a rede, saltou para o chão. Desta vez Gonçalo não caiu, numa noite o seu corpo tomara o jeito à teia de algodão como se sempre nela tivesse dormido.
– Igapê – disse com ternura, à falta de palavras na língua nativa para lhe dar os bons dias.
– Uraçá – respondeu ela, no mesmo tom.
O nome estranho soou doce aos seus ouvidos e pensou como seria fácil viver entre aquela gente, caçando com Pahanjara e Jabuti e amando a filha do Pajé que, naquele instante, com a intimidade de uma esposa, o tomava pelas mãos e puxava para fora da rede, nu e branco como um verme!
Gonçalo nunca se sentira tão embaraçado na sua vida, sobretudo por estar assim despido diante de mulheres, mas não sabia como recuperar a sua roupa ou mesmo se voltaria a vê-la. Ali, na oca, ninguém estranhava a sua nudez e, a pouco e pouco, começou a sentir-se mais à vontade entre eles em pêlo, do que quando andava vestido. Todavia, se os portugueses o vissem naquele lindo preparo iria tornar-se num motivo de chacota para o resto da viagem! E Bartolomeu Dias esperava-o dentro de algumas horas na praia, pensou aterrado, como poderia apresentar-se assim pelado diante do Capitão?
Igapê ofereceu-lhe um fruto que nunca tinha visto antes, parecido com uma pinha[50] enorme, cortando-o com uma faca feita de pedra e expondo a polpa amarela e sumarenta de gosto delicioso. Apesar da sua preocupação, comeu até saciar a fome e logo foram rodeados de moças e crianças que riam e tagarelavam à sua volta, enquanto os arrastavam para a lagoa da floresta. De novo mergulhou nas frescas águas, nadando e brincando como faziam os demais. Quando saiu do banho, viu que Igapê tinha cortado a tapacura, a liga vermelha de fios de algodão que lhe apertava a barriga da perna e em vez dela estava agora um vinco profundo, como uma cicatriz, de muitos anos de uso.
A filha do Pajé, ajudada pelas duas primas mais velhas Uapê e Arati, começou a esfregá-lo com óleos e em seguida, usando uma espécie de navalha feita de uma cana muito dura e aguçada – Gonçalo ainda não vira um único objecto de metal, fosse de aço, ferro, prata ou ouro –, puseram-se a depilá-lo até só lhe restarem os cabelos da cabeça, mesmo assim rapados na nuca com a forma arredondada de uma tigela. Nem as sobrancelhas escaparam!
Ao princípio ainda tentou impedi-las, mas as moças eram persistentes, prendendo-lhe as mãos, agarrando-lhe as pernas, rindo sempre como crianças inocentes com um brinquedo novo. Por fim desistira para não magoar Igapê que parecia ter tanto prazer naquela tarefa e o olhava com uma expressão tão terna e orgulhosa que lhe aquecia a alma e o corpo.
Enquanto trabalhavam, as primas zombavam dela com ternura e uma certa preocupação nos rostos. Como reagiria o Pajé ao ver que a mais formosa das suas filhas e a mais disputada pelos pretendentes que o serviam há anos cortara a tapacura da virgindade por causa de um estrangeiro, vindo de um mundo misterioso e longínquo? Nenhuma virgem tupi podia esconder que perdera a sua virgindade, mesmo que tal acontecesse no mais escondido segredo, pois os espíritos maléficos logo viriam atormentá-la com terríveis castigos e suplícios, por isso tinha de cortar a tapacura para mostrar a toda a gente que se fizera mulher.  Mas Igapê ria-se feliz e os seus olhos falavam de amor quando se pousavam em Uraçá e as primas calaram os receios para a acompanharem na sua ventura.
Coatiá[51] – murmurou a moça com determinação e as primas anuíram, rindo cheias de uma alegria que contagiava Gonçalo.
Retirou da sua bolsa vários potes pequeninos com tintas e uns delicados utensílios feitos em madeira, osso e fibra, não muito diferentes dos pincéis e espátulas que o grumete conhecia. Pelos vistos, as três moças tinham concertado a tramóia e vinham preparadas para tudo, dando logo início à obra de pintura, vestindo-o das cores da sua arte, quartejando-o de tintura preta de casca de angico e vermelha das sementes de crajuru.
Em seguida, Igapê demorou-se amorosamente no traçado, ao longo do corpo, de uns finos arabescos brancos e azuis de lindíssimo efeito, enquanto Arati lhe pintava na testa, de fonte a fonte, uma espécie de fita preta da largura de dois dedos. Quando terminaram afastaram-se dele e Gonçalo, cheio de curiosidade e de susto, correu a mirar-se no espelho da lagoa e, para seu grande espanto, sentiu-se… vestido!
Coatiabo[52] – disse-lhe Igapê com um sorriso de orgulho e Uapê e Arati acenaram num gesto de aprovação.
O grumete mostrou-lhes o seu agrado com palmas, vénias e sorrisos, mirando-se e remirando-se na lagoa durante algum tempo. Porém, as horas corriam velozes junto de da irmã de Pahanjara e Jabuti e ele tinha de fazer um esforço para se lembrar dos seus deveres. Em primeiro lugar precisava de se livrar das pinturas e procurar a sua roupa, se não conseguisse fazer com que lha dessem de boamente, para ir ter à praia com o Capitão e fazer-lhe o relato da sua aventura ou de parte dela, pois nem tudo poderia ser contado e, mesmo se pudesse, alguns momentos passados na oca eram só seus, de guardar para sempre na memória dos segredos. E já devia ser tarde, porque o sol estava quase a pino, tinha de se apressar, se não queria ouvir um sermão dos capitães ou mesmo receber um castigo por desobediência e deserção.
Entrou na água para lavar as pinturas, molhou-se e esfregou-as com força, mas o raio das cores não lhe largavam a pele! Pelo contrário, com a lavagem o vermelho ficava mais vermelho e o azul mais azul. As moças riam entre zangadas pelo pouco valor dado à sua obra e divertidas com a aflição do rapaz.
– Como é que isto sai? – estava a ficar impaciente e agastado por não lhes poder falar na sua língua e ser forçado a recorrer apenas aos gestos para se fazer entender. – Não posso mostrar-me assim à minha gente, não percebem isso?
Gonçalo estava a ficar desesperado, pois isto ainda era pior do que aparecer nu, em pêlo, junto dos seus companheiros. De que seriam feitas as malditas tintas? Vira realmente nessa manhã homens a cortarem de um espesso arvoredo, com machados de pedra, uns paus muito duros da cor de brasas acesas que, lançados pelas mulheres numas bacias com água, largavam uma tinta de um vermelho muito vivo. Perguntara a si mesmo se aquele pau-brasil[53] não daria uma boa tintura para tingir tecidos e agora ali tinha a prova, só que, por mal de seus pecados, o tecido tingido era a sua própria pele!
 Igapê fez-lhe sinal para sair da água e entregou-lhe o arco oferecido por Pahanjara, com um uiraçaba ou coldre, tecido por ela, cheio de flechas, preparando-o para voltarem à povoação. Nesse  instante, uma mulher ainda moça saiu do mato com uma criança minúscula a gritar e a espernear-lhe nos braços e Gonçalo viu, horrorizado, que as duas criaturas pareciam fracas e exaustas e estavam cobertas de sangue, como se tivessem sofrido um ataque de fera ou de algum inimigo da sua tribo. Pegou nas armas para as defender, se acaso os atacantes viessem no seu encalço, mas, para seu espanto, as três primas correram ao encontro da mulher ferida, com muitos risos e exclamações de alegria a que a outra correspondeu com iguais manifestações de júbilo, embora numa voz mais fraca.   
– Uraçá – chamou Igapê, enquanto caminhavam para a beira da lagoa, onde ele se encontrava, e acrescentou uma fala muito expressiva de que o grumete não percebeu palavra.
Porém chegando junto dele, a filha do Pagé tomou a criança nos braços e mostrou-a a Uraçá que viu um menino roliço cor de cobre avermelhado, com um umbigo saliente de onde pendia uma espécie de tripa ensanguentada. Era um recém-nascido que a mãe (e ele lembrou-se subitamente de a ter visto na noite anterior com uma barriga inchada e redonda como a lua cheia) devia ter parido no mato.
A mãe entrou na água para se lavar e as três primas disputaram entre si o prazer de dar banho ao menino, sem medo de o resfriarem ou de lhe fazerem mal e o moço português não pôde deixar de pensar como eram diferentes os costumes na sua terra, em que as mulheres davam à luz as crianças, ajudadas por físicos (se tinham dinheiro) e parteiras, ou mulheres experientes da família, em quartos abrigados e aquecidos, comendo canja de galinha gorda para criar forças, enquanto os recém-nascidos eram limpos e envolvidos em faixas e ligaduras, para terem os corpos perfeitos e não apanharem ar frio e, mesmo assim, morriam tantos!
Quando Sarará saiu da água, tomou das mãos de Igapê o filho que chorava e meteu-lhe na boquinha ávida o negro mamilo que logo lhe calou o pranto, pois a criança começou de imediato a chupar o seio com estalidos de delícia e cerrando os olhos de prazer. Puseram-se, por fim, a caminho da povoação, com as mulheres a fazerem um grande alarido em volta da criança e Gonçalo a fechar o grupo, muito pouco à vontade, mas com uma estranha sensação de ter participado numa espécie de milagre da natureza quase divino.
Quando chegaram à oca, Sarará acercou-se daquele que devia ser o pai da criança e entregou-lha. Tamanduá com uma risada de felicidade ergueu o menino nos braços, para o mostrar em volta, colhendo orgulhoso as exclamações e aplausos dos que se achavam na oca, enquanto a mulher foi buscar uma rede nova, por certo já tecida para a ocasião, e pendurou-a entre as duas colunas de madeira, junto à fogueira da sua família.
Então, para maior espanto e desconcerto de Gonçalo, que pensava ver a mãe finalmente repousar descansada na rede, foi Tamanduá quem nela se deitou, muito bem coberto de tecidos de palma e penas, como se temesse que lhe entrasse o ar e ali ficou como homem parido, recebendo a visita e as felicitações dos parentes e amigos que vieram vê-lo com muitos presentes de comer e de beber e a mulher encheu-o de mimos e cuidados antes de sair para o mato a trabalhar.
Vendo a estranheza de Uraçá, Igapê tentou explicar-lhe que o pai tinha de estar assim empanado até secar o umbigo à criança, sem se erguer da rede ou sair para a caça ou outro trabalho, para lhe não dar um ar, pois logo o filhinho morreria e ele ficaria doente da barriga. Mas era tão difícil, mesmo impossível, explicar-se sem palavras, só por gestos! Como poderia dizer-lhe que gostaria de estar no lugar de Sarará se Tamanduá fosse Uraçá? Como contar-lhe que da parte da mãe não há perigo para a criança, pois ela é apenas o vaso onde se guarda a semente da vida que vem do homem? Por isso ela pode ir trabalhar e amamentar o filho em segurança, por quanto todo o perigo está no pai que o gerou.
A única coisa que o grumete percebeu dos gestos e palavras da sua bela companheira foi de um perigo qualquer que ameaçava Tamanduá e o filho, se ele deixasse a rede, por certo qualquer superstição ou feitiço, pois já tivera oportunidade de ver como estes indígenas temiam os feiticeiros e os agouros. Jabuti veio chamá-los para se sentarem com o resto da tribo em volta das fogueiras para comer a caça acabada de assar e o grumete pensou que nada o distinguia daquele povo, a não ser o tom mais claro do seu cabelo.
No final da refeição, os homens reuniram-se para decidir sobre uma proposta do Pajé para ir ver aqueles homens, brancos como os espíritos dos seus antepassados, que haviam viajado de tão longe em grandes pássaros de madeira e asas de pano. A discussão não tomou muito tempo pois os recém-chegados tinham despertado a curiosidade de toda a tribo e só os anciãos tentaram dissuadir o povo de ir até à praia para ver os emboabas.
Os mancebos que cortejavam a filha do Pajé, desde há muitas luas, servindo fielmente Jacaúna – fazendo-lhe a roça, pescando e caçando para ele, defendendo-o dos seus inimigos –, sentiram o dever de escoltar o velho e foram os primeiros a agruparem-se no recinto da ocara, bem armados e com os seus melhores adornos de penas. Outros caçadores e guerreiros da taba decidiram igualmente acompanhá-los, assim como algumas mulheres mais corajosas. Uraçá e Igapê iam no grupo de Pahanjara e Jabuti, pois o grumete sentia que os pretendentes da moça o olhavam de soslaio, alguns mesmo com raiva e não queria provocar nenhum conflito.
Gonçalo não lograra encontrar a sua roupa e ainda menos quem lhe desse um produto qualquer para tirar as pinturas, pelo contrário, tivera de sofrer a admiração de todas as moças da taba que vinham ver de perto e tocar os belos desenhos do seu corpo. Igapê terminara o trabalho da sua transformação num bravo Tupi, revestindo-lhe o cabelo de barro vermelho, tornando-o igual a outros caçadores e, agora, caminhando entre os seus novos amigos, ele sentia-se mais tranquilo e confiante, um verdadeiro homem da floresta, impossível de ser reconhecido pelos seus anteriores companheiros. 


Cap. VI
Terras de pau brasil

OEra o dia vinte e seis de Abril, Domingo de Pascoela e todos os portugueses tinham vindo a terra com Pedro Álvares Cabral, de manhã, para ouvir a missa cantada por Frei Henrique e os seus frades. Nas naus apenas se quedaram (e de muito mau humor) os matalotes indispensáveis à vigilância e serviço dos navios:
– Somos sempre os mesmos de serviço! A sorte quando nasce não é p’ra todos!
– Calai-vos lá, que amanhã também é dia. Amanhã há-de ser a vossa vez!
O Campanário também desembarcara, ansioso por encontrar o amigo que não voltara à capitânia na noite anterior, tendo partido com uma tribo inteira de selvagens. Outra das suas preocupações fora ver dois dos malandrins oferecerem-se como voluntários para ficarem na nau e isso não augurava nada de bom, pois teriam o dia todo para procurar o mapa do Assanhado sem ninguém os perturbar. Na praia, buscou pela orla da floresta algum vestígio do grumete, não fossem os homens pardos terem dado cabo dele e deixado o corpo ao abandono para pasto de feras e de vermes, mas nada encontrou.
– Eh, Campanário, andas a ver do Assanhado?
          – A estas horas o rapaz inda ‘tá a dormir nos braços d’alguma mocinha de pele vermelha!
– Deixa-te de passeio e vem mas é pr’aqui mostrar o que vales!
Voltou para junto dos companheiros que, à sombra de uma árvore enorme, estavam a armar um esperável ou pálio fixo e dentro dele um altar muito bem ornamentado para a celebração da missa cantada, a primeira a ser rezada naquele mundo novo, como dizia Frei Henrique com os olhos brilhantes de fervor e emoção.
***.
A tribo de Jacaúna chegou à praia no momento da pregação, quando o padre se desvestiu e subiu a uma cadeira alta, tendo diante de si os portugueses, sentados ou ajoelhados na areia da praia. Gonçalo observou como alguns dos nativos se acercavam do grupo dos portugueses, apesar dos conselhos e avisos do seu Pajé. Não queria ser visto pelos companheiros naquela figura, mas desejava assistir à missa e ouvir os cânticos que lhe lembravam uma época ainda não muito distante quando cantara no coro de meninos da capela d’El-Rei D. João II e este o chamara à sua presença para o felicitar.
Não lhe foi difícil descobrir o Campanário, pois a sua cabeça elevava-se pelo menos dois palmos acima dos outros, mas ainda não sabia como poderia dar-se a conhecer ao amigo sem os demais se aperceberem. Estava irreconhecível e isso deu-lhe ânimo para se juntar ao grupo de nativos que, mais confiantes ou curiosos da cerimónia, se tinham misturado aos homens brancos e imitavam os seus gestos de oração aos deuses da terra e do céu, pondo-se de joelhos com mostras de muita devoção.
Frei Henrique pregou uma bela história do Evangelho, no fim da qual tratou da vinda dos portugueses e do achamento daquela terra desconhecida, confirmados com o sinal da Cruz, a que todos estavam sujeitos, causando com suas palavras grande devoção entre os matalotes e soldados. O Capitão Pedr’ Álvares Cabral tinha junto de si a bandeira de Cristo, dada por el-Rei D. Manuel em Belém, a qual esteve sempre erguida durante o Evangelho. Bartolomeu Dias procurava com o olhar o grumete deixado em terra na noite anterior e, não o vendo entre os indígenas, ficou preocupado:
– Não vejo o rapaz – disse em voz baixa a Pêro Vaz de Caminha – e há muito que já cá devia estar! Que lhe terá acontecido?
– Por certo nada de mal, meu Capitão, que esta gente é boa e gentil. Reparai como acompanham as nossas orações, até parecem cristãos!
– Mas o moço mostrou-se sempre atinado, só um motivo de força maior o levaria a faltar ao nosso encontro.
– Sossegai, Capitão, deve andar a ver alguma coisa ou algum lugar de interesse para nos contar.
– Seria bom ele descobrir se têm minas de ouro ou prata – acrescentou o Capitão-mor. – Até agora só vi enfeites de ossos, penas e pedras…
Terminada a pregação emocionada de Frei Henrique, os padres entoaram os seus salmos e, em coro, deram início a um inspirado Hossana à glória de Deus. As vozes enchiam o ar, sobrepondo-se ao suave marulhar das ondas e aos ruídos ásperos da selva, ecoando contra as escarpas vermelhas como numa catedral. Sem se dar conta do que fazia, sentindo-se dominado pela beleza do lugar, pelo sortilégio do momento e por todas as sensações novas que lhe traziam a alma em tumulto, Gonçalo soltou com toda a força da sua alma as notas vibrantes do cântico sagrado. A sua voz perdera o tom cristalino da infância, mas ganhara em cor e intensidade, ressoando agora, em plena natureza, como o mais belo instrumento musical, acima das vozes dos sacerdotes que, um a um, se foram calando, entontecidos de espanto e de fervor.
Milagre de Deus ou obra do Diabo? Um selvagem nu e sarapintado como uma criatura infernal, numa terra nunca antes pisada por homem branco, a cantar em latim com voz de anjo? Matalotes e soldados, arrepiados de medo, caíram de joelhos orando e vozes trémulas  balbuciavam em surdina: “Milagre! Milagre!”. Pedro Álvares Cabral e os Capitães das naus entreolhavam-se sem saber o que pensar ou fazer. Eram homens sabedores, tinham visto muito mundo, testemunhado coisas maravilhosas, mas nunca haviam presenciado nada de semelhante. Todavia, precisavam de se dominar e dar o exemplo, não podiam agir como gente supersticiosa ou ignorante, lançando-se por terra a gritar “Milagre!”.
Gonçalo apercebeu-se do súbito silêncio à sua volta e dos olhos arregalados de pasmo de todos os homens, brancos ou pardos, postos nele como se contemplassem uma aparição divina ou mesmo diabólica e emudeceu, horrorizado. O Campanário viu no peito daquele selvagem nu brilhar a cruz de prata de Gonçalo e, fervendo de raiva, lançou-se de punhos em riste contra o maldito assassino do seu amigo, que se enfeitava com os despojos do morto. Até mesmo a voz lhe roubara, que aquela voz era… a do Assanhado! Suspendeu o punho cerrado, demolidor como um maço, a escassas polegadas da cara do selvagem. Realmente quem lhe pusera a alcunha de Campanário acertara, pois era estúpido como uma torre de Igreja, se nem o seu maior amigo conseguia reconhecer!
– É o Assanhado, gentes! Não vedes qu’é o Assanhado?! – gritou cheio de alegria, enquanto erguia o grumete no ar, apertando-o nos braços até quase o sufocar.
– Mateus, livra-me deste aperto! – suplicou-lhe Gonçalo em voz baixa. – Não posso aparecer assim pelado diante dos Capitães.
Imediatamente o gigante despiu a camisa encardida que Gonçalo se apressou a enfiar e o cobriu até aos pés como a túnica de um árabe.
***
O coração de Igapê cerrara-se de tristeza e medo. Já de noite, na clareira da lagoa, o estrangeiro a maravilhara com o seu canto, abrindo-lhe no coração a flor do amor, como o botão do nenúfar que lhe dava o nome se abria à morna carícia do sol. Nunca vira ou ouvira nada assim. A que tribo misteriosa pertencia Uraçá?! Que seres eram aqueles, vindos em pássaros gigantes, cantando cânticos de estranhas harmonias a Tupã? Em breve os pássaros de madeira estenderiam as grandes asas brancas e partiriam, levando no seu ventre Uraçá, o gracioso milhafre que partilhara com ela a rede de dormir e Igapê choraria por muitas luas o vazio da sua ausência. Entregara ao estrangeiro a flor da sua virgindade, embora sabendo que aquela ligação não duraria muito e cortara a liga vermelha que a mãe lhe atara na perna quando era ainda curumim[54], mostrando assim a toda a tribo que se tornara na esposa do emboaba, até ao dia da sua partida.
Porém, no fundo do seu coração, algo lhe dizia que, depois de ele se ir embora, já não seria capaz de aceitar o pretendente que melhor tivesse servido seu pai na esperança de a ganhar em casamento, como todos esperariam que fizesse, preferindo em vez disso deixar-se morrer de mágoa e tristeza em qualquer canto da floresta. Afastou-se lentamente para junto do Pajé que na orla da floresta agoirava grandes males para o seu povo, trazidos por mais daqueles estrangeiros que chegariam muito em breve. Mas poucos ouviam Jacaúna porque, ao verem os pajés dos brancos pararem com os seus rituais, tomaram os tambores e as flautas e deram início à sua dança de agradecimento a Tupã, o Deus do Trovão e de todas as coisas da floresta.
Frei Henrique soube que já não conseguiria terminar a missa com o mesmo espírito do começo, por todos terem ficado perturbados com a cena do grumete nu e agora ainda menos, com as músicas dos nativos que davam gosto ver e excitavam os sentidos. Disse então:
Dominus vobiscum.
Et cum spiritu tuo – respondeu-lhe um coro distraído.
Ite. Missa est – e deu a bênção aos fiéis.
Deo gratias. – Os homens, benzendo-se apressados, ergueram-se e dispersaram.
Bartolomeu Dias pôs-se de pé, sacudiu a areia das calças e mandou chamar o grumete que fora rodeado pelos companheiros ansiosos por ouvirem contar a sua aventura. Gonçalo apressou-se a obedecer ao mandado do Capitão, sentindo-se mais à-vontade com a vestimenta improvisada a tapar-lhe quase por completo as pinturas da pele. Só então se lembrou de Igapê e procurou-a com o olhar, mas a gentil filha da floresta tinha desaparecido. Com o coração apertado de angústia, foi ter com o grupo de Capitães que o esperava e corou ao ver Pedro Álvares Cabral a olhá-lo com curiosidade e um sorriso divertido nos lábios:
– Então és tu o milagre desta Páscoa? Sou um homem de sorte com tal grumete na minha nau! – O Capitão-mor não parecia zangado mas Gonçalo baixou os olhos, sem saber o que dizer.
– Foi boa ideia deixares que te vestissem… ou melhor, te despissem como eles – disse Bartolomeu Dias provocando algumas gargalhadas em redor –, para confiarem em ti e te permitirem passar a noite na aldeia.
– Ele tem jeito para lidar com os nativos – acrescentou Diogo Dias, o irmão do Descobridor da Passagem –, lembrai-vos de como recebeu os dois homens na nau.
Os Capitães concordaram.
– Viste na povoação alguma coisa feita de prata ou ouro?
– Não, Senhor Capitão-mor, nada vi de metal. Até as armas são de madeira e pedra e usam nas suas tarefas cestos, bacias e potes de barro ou carapaças duras de grandes tartarugas e de outros bichos como o tatu.
– Têm ídolos ou imagens de algum deus? – perguntou Pêro Vaz de Caminha.
– Não, meu senhor, nem sequer os vi rezar.
– Senhor Capitão-mor – rogou o escrivão –, deixai o moço ir comigo à nau para lá me contar em sossego tudo o que viu, para eu o escrever na minha carta a El-Rei.
– Seja, Pêro Vaz – concedeu Pedro Álvares Cabral –, volvamos todos às naus para comer e, assim, já podereis indagar a gosto. Mas entregai-mo logo que acabardes de o ouvir, a fim de o trazermos de novo aqui, esta tarde, para ir com a gente da terra a fazer vida com eles, vendo com mais atenção aquilo que não querem que vejamos.
A uma ordem dos capitães, todos os homens se juntaram para seguirem o Capitão-mor até aos batéis, levando a bandeira erguida e tangendo gaitas e trombetas, como um cortejo de embaixada. Alguns gentios entraram na água até aos peitos e outros subiram para quatro embarcações, que não eram mais do que umas jangadas de três troncos atados entre si, e acompanharam os escaleres dos portugueses mas só até onde podiam tomar pé, volvendo depois à praia onde se sentaram a ver os batéis acostarem as naus e os estrangeiros a entrar nelas.
***
Depois de comer, Cabral mandou chamar à nau capitânia todos os capitães com os quais se reuniu em conselho na sua câmara para onde convocara já Pêro Vaz de Caminha.
– Senhores – disse o Capitão-mor sem delongas nem rodeios –, parece-vos bem que enviemos a nova do achamento desta terra a el-Rei Nosso Senhor? Podíamos dispensar o navio dos mantimentos...
– Sem dúvida! – concordou Bartolomeu Dias. – Por certo, Sua Alteza quererá mandar descobrir melhor esta terra e saber dela mais do que nós agora o podemos fazer, por irmos de viagem para a Índia.
Todos os capitães das naus e caravelas deram o seu acordo à proposta de Cabral que perguntou ainda:
– E que vos parece tomarmos por força um par destes homens, para os mandar a Sua Alteza, deixando aqui por eles dois dos nossos degredados?
– Desculpai, meu Capitão, mas isso parece-me escusado – disse Nicolau Coelho com firmeza. – Se os tomarmos por força e os levarmos, tal feito não servirá de nada a el-Rei, pois esta gente fala uma barbaria que ninguém entende e não haverá tempo de a aprender durante a viagem, nem de lhes ensinar a nossa.
– E mesmo que falassem a nossa língua ou nós falássemos a deles – acrescentou o escrivão Caminha, dominando a sua timidez –, quando são levados à força, os gentios costumam dizer que na sua terra há tudo o que lhe perguntamos, mesmo que não seja verdade, para nos deixarem satisfeitos e de bem com eles.
– Também o creio – apoiou Diogo Dias. – Muito melhor informação poderão dar dois ou três degredados que cá ficarem a aprender a língua e os usos da terra.
Bartolomeu Dias veio em socorro do irmão:
– Levar qualquer gentio daqui à força só causará escândalo e criará ódios nesta gente tão pacífica e que nos recebeu com tanta amizade. Devemos continuar a amansá-los e a pacificá-los, oferecendo-lhes presentes e deixar com eles um par de degredados quando daqui partirmos, como amigos e não como assaltantes ou piratas.
Os restantes capitães concordaram também que assim se fizesse.
– Seja, então, meus senhores – concluiu o Capitão-mor, satisfeito. – Será conforme determinastes. Vamos de novo a terra, para vermos melhor como é o rio e também para folgarmos um pouco que tão depressa não teremos outra ocasião.
***
Quando Pêro Vaz de Caminha mandou chamar Gonçalo e pediu um esquife para os levar a terra, o grumete correu a vestir a sua última camisa e umas bragas, retomando em seguida o arco e o carcás, oferta dos filhos de Jacaúna. Com a pressa de partir esqueceu por completo o precioso mapa e os avisos de Mateus que lhe contara a conversa dos traidores. Viu o Guardião e foi pedir-lhe um dos muitos colares que traziam para oferecer aos nativos.
– Vou passar a noite na aldeia dos gentios, Mestre Guardião, por ordem do Senhor Capitão-mor. Preciso de levar um presente.
– Pois é, pode parecer mal ires de mãos a abanar… – e o homem riu divertido – que eles são de muitas polícias e cortesias!
No entanto foi com ele ao porão e deixou-o escolher à vontade num saco de bugigangas. Gonçalo decidiu-se por um colar de vidrinhos vermelhos que, na pele de canela de Igapê, iriam luzir com o brilho de rubis e, depois, quase sem olhar tomou uma faca para o Pajé.
– Esse colar parece mais prenda de namorado para uma mulher, do que de oferta de visitante ao seu hospedeiro! Que andas tu a tramar, ó Assanhado?
A cara do grumete pareceu arder, ficando da cor dos vidrinhos do colar, e a gaguejar agradeceu ao Guardião que ria do seu embaraço, partindo a correr. Os capitães pediam-lhe para passar mais tempo com os nativos e isso era tudo quanto poderia desejar, mas temia já não ser bem recebido. Por que partira Igapê? Estaria a dizer-lhe que não voltaria a partilhar com ele a sua rede de dormir?
Os matalotes e soldados entraram armados nos batéis que iam atrás do escaler do Capitão-mor com a bandeira de Cristo. Os gentios andavam na praia, à boca do rio e, mal viram os esquifes a acercarem-se, puseram os arcos na areia e fizeram sinais aos portugueses para desembarcarem; porém, assim que os barcos puseram as proas em terra passaram para a outra margem. Alguns matalotes mais afoitos seguiram-nos, atravessando o rio, e misturaram-se com eles para trocar sombreiros, carapuças de linho e outras bugigangas pelos seus arcos e setas. Outros, encorajados, seguiram o exemplo dos primeiros e eram já tantos a querer fazer tratos com os naturais da terra que estes, já impacientes, esquivavam-se e afastavam-se. Pedr’ Álvares Cabral observava a cena com Bartolomeu Dias e franziu o cenho, preocupado:
– Há muita confusão por aquela banda, Capitão Dias. Não me praz mesmo nada que persigam assi os gentios por cobiça, para fazerem tratos!
– E eles já se mostram enfadados, estão mesmo a ir-se embora. Espero que os nossos não dêem causa a nenhum conflito!
– Melhor será pôr cobro à confusão e sem tardança! Ei, vós dois, passai-me além!
Os matalotes que o Capitão-mor chamara correram a tomá-lo ao colo, fazendo uma cadeirinha com as mãos e os braços, para o porem na outra margem sem se molhar e logo que tocou com os pés no chão Cabral falou em altas vozes e com muita severidade aos homens que o ouviram respeitosos e atemorizados:
– Cessai já com todo este alvoroto! Não vedes que os assustais? Quereis que nos façam guerra? Ide para a praia e quedai-vos junto aos vossos capitães!
Todos os matalotes e soldados se apressaram a obedecer e a atravessar o rio. Alguns indígenas, vendo-os partir, acercaram-se do Capitão-mor para lhe mirar as vestes e muito curiosos por ver os dois homens tomarem-no de novo ao colo para passar o rio, atravessaram também com eles rindo e troçando de tal proeza. Pedr’ Álvares Cabral compreendeu que, estranhamente, estes homens não sabiam o que era um chefe, um comandante, um rei ou um imperador e por isso não se ajoelhavam nem se curvavam diante dele, com mostras do acatamento que lhe era devido e que exigia dos seus homens; mas tão pouco o faziam a qualquer outro da sua tribo, apenas prestavam um pouco mais de atenção às falas dos homens idosos.
Gonçalo viu como muitos dos acompanhantes de Jacaúna se mantinham na praia e reconheceu entre eles Uapê e Arati e outros da sua oca. Também o feiticeiro não arredara pé até ver o Capitão-mor andar ao longo do rio e foi falar com ele, cheio de determinação, tendo por fim, ao concluir a sua fala, tirado a grande pedra verde do seu lábio e procurando repetidas vezes oferecê-la ao emboaba, buscando meter-lha na boca, o que fazia os matalotes chorarem de tanto rir, até Cabral se enfadar com a brincadeira e o deixar, virando-lhe as costas. Então Jacaúna entregou a um marinheiro a pedra para que a levasse ao Capitão-mor e o português deu-lhe um sombreiro em troca. Gonçalo viu como o velho feiticeiro olhava tristemente para o chapéu e para as costas do Capitão-mor que se afastava e pôde entender a humilhação do Pajé. Sentiu pena e um temor desconhecido a apertar-lhe as entranhas, como um mau pressentimento.
Nesse instante, o grumete ouviu sons de festa e grande agitação algures na praia. Era o gaiteiro Francisco Galego a tocar na sua gaita de foles uma modinha bem puxada, enquanto Diogo Dias e alguns companheiros mais folgazões dançavam com os indígenas, agarrando-os pelas mãos, o que sendo contra o seu costume os fazia rir a bom rir. Bailavam muito bem com ele ao som da gaita e também da voz do calafate Luís Tomé que Gonçalo conhecera na Casa da Mina e não perdia ocasião de tocar o seu cavaquinho e de cantar as modas de Lisboa, trazendo sempre muitos gentios à sua volta, encantados de o ouvir. E o capitão Diogo, arrebatado pela música, como se não fora o antigo almoxarife[55] de Sacavém mas um qualquer matalote desbragado, fazia o pino andando sobre as mãos e dando muitas voltas ligeiras e saltos reais[56], com os nativos a soltarem grandes risadas e a baterem as palmas como viam fazer aos portugueses.
Andavam entre eles umas cinco mulheres nuas, uma com pinturas numa perna, desde o joelho até à nádega e o resto do corpo com a própria cor e uma outra com um filho ao peito, atado com um pano que apenas lhe deixava as perninhas à mostra, mas Gonçalo, cheio de tristeza, não achou Igapê entre elas. Então, o Capitão-mor deu ordem para que todos passassem o rio com ele e os portugueses seguiram ao longo da praia, enquanto os batéis os acompanhavam rente à costa, para que neles se refugiassem em caso de perigo, até que, com grande pesar de Gonçalo, foram dar à grande lagoa de água doce onde, na noite anterior, se banhara com Igapê e os seus amigos. Embora a lagoa estivesse deserta, o grumete sentiu que os homens brancos profanavam aquele lugar sagrado com os seus risos, chistes e doestos[57].
Súbitos gritos, vindos dos escaleres, alertaram Bartolomeu Dias que viu os remadores de pé, erguendo os remos no ar e apontando para a água, a soltarem brados de medo e aflição.  Alguns gentios tinham corrido para a beira-mar, mas sem entrar na água e mostravam igual agitação e Gonçalo, que caminhava perto dele, foi atrás do Herói da Passagem quando o viu atravessar o rio e correr para os barcos.
 – Japeru-jaguara! Uperu! Japeru-jaguara! – bradaram os homens da floresta, mal o capitão chegou junto deles e apontaram para uma longa sombra esguia que se deslocava com grande rapidez, sob a água baixa, cortando a superfície com uma barbatana pontiaguda e triangular como a quilha de um barco.
– Tubarão! Tubarão! – gritaram, por sua vez, os homens brancos.
        Bartolomeu, durante a sua longa carreira de descobridor, já tivera numerosos encontros com tubarões e reconhecia naquele exemplar de bom tamanho um devorador de homens, a nadar rente à praia em círculos cada vez mais apertados, enfrenesiado e ainda não satisfeito apesar do estrago que causara. Com efeito, um dos indígenas, deitado na areia, com uma perna arrancada acima do joelho, esvaía-se em sangue perante a impotência dos seus companheiros que o viam morrer sem meios de lhe acudir.
– Como aconteceu? – perguntou o capitão para os seus homens que, ao vê-lo,  chegaram o batel o mais cerca que puderam. – Nunca pensei que se acercassem tanto de terra, pois precisam de água mais funda para se virarem de borco, quando atacam.
Manuel Serrano, o cabeça do grupo contou, ainda alvoroçado:
– Pois este apanhou aquele desinfeliz quase na areia, sem tir-te nem guar-te, antes da gente o ver e poder dar aviso.
– Arrancou-lh’ a perna d’uma só ferradela, igual se lha cortara c’um machado! – o remador falava a tremer, como se tivesse febre: – Vi-lhe bem as muitas ordens de dentes quando lançou a cabeça toda fora d’augua pró abocar e, assim que lhe ferrou os dentes, sacudiu o corpo todo c’ uma força d’espantar e em menos de um ai, sacou-lh’ a perna!
– Tinha levado o home inteiro s’os outros  lho nã estorvaram, puxando-o pra terra.
         O tubarão dera de novo a volta e apontava o focinho alongado e pontiagudo para a praia, movendo a cabeça de um lado para o outro a farejar a presa e deslizando pela água como uma seta pelo ar e Gonçalo pensou, agoirento, se aquela alimária não se havia vingado nos gentios por estes caçarem os da sua espécie, com arpões e setas cujas pontas eram feitas dos seus terríveis dentes triangulares, do tamanho de um polegar e de bordos serreados, como uma seta que lhe dera Igapê, os quais eram tão mortíferos nas mãos dos homens como na boca dos seus donos. Porém, a voz de Bartolomeu Dias, tirou-o dos seus pensamentos:
– Dai-me o arpão do batel!
E entrou na água até às coxas para se chegar ao esquife. Gonçalo não se conteve e gritou de inquietação, ao ver o tubarão desenhar um círculo mais apertado:
– Cuidado, meu Capitão, que o monstro já se  acerca!
       No barco os homens sobressaltaram-se e Manuel Serrano tomou o arpão que sempre traziam quando vinham folgar a terra, para o caso de verem presa de monta, como peixe-boi, espadarte ou tubarão e lançou-o rapidamente ao capitão, tendo o cuidado de verificar se a corda que o prendia ao batel estava bem segura, enquanto dizia:
– Saltai cá pra dentro, que aí nã estais seguro e daqui vereis melhor o bicho e podeis arpoar de riba. – Bartolomeu obedeceu, estendendo a mão ao homem que o içou para o escaler.
– E tu, rapaz, sai já da água, que ali vem ele! – bradou enquanto erguia o arpão e se plantava na proa do batel em posição de lançamento.
Gonçalo nunca vira um tubarão na sua vida, só os conhecia dos contos de seu pai e aquele monstro acinzentado em forma de canudo, a rasgar as águas com a velocidade de um tiro de bombarda, mas tão silencioso e mortífero como um dardo, encheu-o de tal pasmo que ficou incapaz de se mover, imerso na água até à cinta, com o arco e uma seta nas mãos, ouvindo apenas o suave murmúrio da quebra-mar nas suas costas.
Bartolomeu viu, pelo canto do olho, o estado do rapaz que se encontrava a escassos metros do batel e empalideceu de inquietação, pois não tinha dúvidas de que o tubarão já o cheirara e vinha para o atacar. Sem perder o sangue-frio, fez sinal aos remadores para imobilizarem o esquife e não fazerem um som. Na praia, os nativos pareceram compreender a situação e ficaram quietos e em silêncio fitando Uraçá, o moço estrangeiro adoptado como um filho por Jacaúna.
O capitão deixou o tubarão – muito maior do que lhe parecera ao longe – passar à sua frente e permaneceu imóvel, vendo-o acercar-se do grumete e rodar o corpo até mostrar o ventre branco e a bocarra enorme que se escancarou expondo as fiadas de dentes acerados com lâminas. Antes da monstruosa criatura abocanhar Gonçalo, Bartolomeu lançou o arpão com toda a força dos seus poderosos músculos e o longo ferro foi cravar-se profundamente no ventre do feroz esqualo.
Um grito soltou-se de todas as bocas quando o gigantesco animal saltou no ar, quase dobrado sobre si mesmo, do choque do ferro e da dor que lhe haviam quebrado o ímpeto do ataque. Esquecido da presa, ao embater de novo na água, esvaziando-se de sangue e de vida, lançou-se para a frente, ziguezagueando veloz em busca de águas mais profundas, desenrolando a corda do arpão até encontrar a resistência do batel que estremeceu e oscilou, quase fazendo Bartolomeu cair ao mar. Gonçalo que se recompusera do susto e nenhum mal sofrera, agarrou-se de um salto ao bordo do batel já em movimento e o capitão que, com o ressalto do barco caíra de borco na proa, puxou-o para dentro e ordenou aos remadores ainda pasmados da cena:
– Recolhei os remos e deixai-o puxar pelo batel que assim se vazará mais depressa do sangue e não tardará a morrer.
Os homens obedeceram, parecendo ganhar nova vida à voz do capitão, apesar dos solavancos do barco que, segundo o bicho mergulhava ou volvia à superfície, ora parecia voar, ora caía com um violento chapão na água, levantando grandes ondas vermelhas de sangue e molhando os matalotes que falavam todos ao mesmo tempo de excitação e medo:
– Mas que força tem a alimária! Leva-nos mais asinha que o vento em velas arvoradas!
– Parece mas é que o leva o demo! Vamos lá ver se nã nos destronca o batel!
De súbito, o tubarão deu meia volta e nadou veloz na direcção do escaler, fazendo alguns remadores erguerem-se cheios de pavor:
– Ai, minha Nossa Senhora, qu’ele vem contra nós e aqui não temos armas!
– Jesus me valha, qu’é o nosso fim!
Bartolomeu Dias bradou severo mas com voz tranquila:
– Sentai-vos e calai-vos. Tomai os remos e se o tubarão se acercar do esquife, batei com eles na água e mesmo no bicho que já deve estar mui fraco.
De novo os homens obedeceram segurando os remos com força nas mãos, de olhos fixos na barbatana triangular que avançava para eles, ali à espera, no pequeno barco agora imóvel. No instante em que o corpo do tubarão era já todo visível, Gonçalo pôs-se de pé e, com movimentos precisos e seguros, colocou a seta emplumada cuja ponta era um enorme dente de tubarão no arco de Pahanjara e retesou a corda. Os companheiros e também Bartolomeu olharam-no com admiração, esquecidos dos remos. Gonçalo não imaginava qual seria o resultado do seu disparo, pois havia falhado as suas primeiras tentativas com aquela arma desconhecida, mas a pouco e pouco apanhara-lhe o jeito, aplicando ao longo arco indígena o que aprendera com os archeiros e besteiros portugueses durante a viagem.
Quando o enorme esqualo ergueu o focinho, abrindo a boca e fazendo avançar a poderosa mandíbula ornada de terríveis presas, o grumete desferiu a seta que se cravou até ao cabo na parte inferior da garganta do animal que se contorceu e se afundou. O barco, lançado para longe, só não se virou por um milagre dos céus que tanto haviam invocado. Quando voltou à superfície, o tubarão boiava já sem vida, mostrando o ventre branco atravessado pelos dois ferros e os remadores saudaram o feito do capitão e do grumete com muitas palmas e assobios.
– Foi obra, sim senhor! – felicitou-o Bartolomeu. – Mostraste muita coragem e sangue-frio, para alguém tão moço! Tenho de falar de ti ao Capitão-mor, para que te dê alvíssaras.
– O meu capitão já tinha dado cabo dele! – respondeu com modéstia, corado até às raízes do cabelo dourado.
– Pois olha que eu o vi cheio de vida e prestes a arrombar-nos o barco ou a virar-nos de pernas para o ar! Foi o teu tiro que acabou de o matar e evitou o pior. Bom, agora é tempo de volver à praia e tu podes ir dizer aos teus amigos gentios que venham buscar o tubarão se o quiserem comer, que lho oferecemos em senho de amizade. Vamos, minha gente, dai força aos remos, antes que apareçam mais dessas criaturas ao cheiro do sangue.
A lembrança do ataque pôs asas nos remos dos matalotes que, em menos de um credo, puseram o escaler em terra e puderam puxar para a praia, auxiliados por alguns caçadores do Pajé, o tubarão que traziam à toa[58]. Os nativos reconheceram a seta de Pahanjara e sorriram a Uraçá, o moço estrangeiro que Igapê amava e o grumete soube então que fora definitivamente aceite pelo clã de Jacaúna. Gonçalo recebeu licença para procurar os seus amigos no lugar, onde se juntavam muitos dos homens da floresta que preferiam observar os estrangeiros a distância a misturar-se com eles. Cada vez surgiam mais gentios curiosos, vindos de outras tabas aonde chegara a notícia do espantoso acontecimento, muitos através da floresta, outros pelos rios, em canoas feitas de um só tronco escavado, com vinte ou trinta homens a remar de pé, que pareciam voar.
O grumete viu Pahanjara e Jabuti encostados a uma árvore tendo junto de si os pesados arcos de caça e as longas zarabatanas e escondeu-se atrás de uns arbustos para se despir, guardando a roupa na sacola que trazia ao ombro. Depois, mostrando-se orgulhoso da sua nudez e das pinturas de Igapê, tomou o arco e o carcás e acercou-se dos dois irmãos. Jabuti recebeu-o com um grande sorriso:
– Uraçá!
– Jabuti. Pahanjara. – disse Gonçalo na falta de melhor saudação.
– Uraçá! – fez igualmente Pahanjara, pondo-lhe a mão no ombro e continuou a falar com ele como se o pudesse entender.  
– Japeru-jaguara! Uperu! Japeru-jaguara! – interrompeu-o o grumete, procurando pronunciar bem as palavras que ouvira aos nativos e apontado para a praia.
Os dois irmãos pareceram compreender e Uraçá ficou à espera, enquanto eles se dirigiram até ao lugar onde um grande ajuntamento de gente observava os caçadores nativos a desmancharem o tubarão. Quando chegaram junto deles, dois homens tinham acabado de abrir o imenso estômago do animal e dele retiravam a perna inteira que fora arrancada uma hora antes ao desgraçado que morrera. Com todo o cuidado foram pô-la junto ao morto na rede que entretanto alguém trouxera para o transportar para a taba dos seus antepassados.
***
O rosto de Igapê iluminou-se ao vê-lo chegar. Sem dizer uma palavra entrou na oca indo para junto das outras mulheres preparar a comida do seu guerreiro. Suspendeu as tarefas quando Uraçá entrou com os irmãos, carregados de tassalhos de carne de tubarão e ficou feliz por ver como o estrangeiro a buscava com um olhar ansioso e lhe sorria com carinho. Quando as mulheres foram tomar as carnes para as pôr nos juraus, Igapê juntou-se a elas e recebeu das mãos do amado o seu quinhão de comida.
Os homens foram saudar o Pajé e dar-lhe a parte da presa que lhe era devida, mas o feiticeiro manteve-se absorto a lançar as pedras e conchas da sua arte, invocando os espíritos dos antepassados para lhe mostrarem o que o futuro reservava ao seu povo e essa visão deixava-o assustado. Os padrões que se formavam sobre a esteira eram os da desgraça, doença, servidão e morte e ele sabia que tinha de aprofundar a sua visão com os fumos das ervas sagradas de Tupã, na Gruta do Recife Vermelho onde as profecias nunca erravam. Com profunda dor, guardou as conchas na bolsa de pele e correspondeu com um sorriso triste à saudação dos filhos e do estrangeiro.
Na oca, à fogueira, as cenas repetiram-se como na noite anterior, com Uraçá e os seus amigos a comerem tassalhos de tubarão assados, regados pelo generoso cauim, o vinho de aipim e mandioca cozidas que as mulheres preparavam espremendo a polpa com as mãos, mastigando e cuspindo para dentro das vasilhas o líquido que deixavam a fermentar. Contavam esse e outros feitos dos estrangeiros, divertidos ou espantados com tantas novidades, olhando para o hóspede e dizendo aquilo que o grumete, mesmo sem conhecer a língua, sabia serem chistes e graçolas, mas também ditos de apreço e admiração, pelas expressões dos contadores das histórias e os risos e exclamações dos ouvintes, sobretudo das mulheres. Descreviam, sem dúvida, o tumulto causado na missa pelo seu glorioso Hossana e a caça ao tubarão, pois mostravam em redor a seta que Uraçá usara para dar morte fulminante ao gigante dos mares.
Então as mulheres trouxeram cangoeiras de erva-santa para o fumo da amizade e Uraçá mal lhe sentiu o cheiro ficou mareado, recordando a experiência terrível do dia anterior. Mas Igapê acercou-se dele e deu-lhe um objecto feito de dois ossos ocos, como tubos longos e estreitos atados no meio em Y e uma pequena prancheta esculpida em forma de ave, com uma concavidade no meio onde o grumete viu um montinho de pó branco. “Pericá”, disse a jovem e voltou a sentar-se junto dele.
Três nativos com idênticos utensílios, meteram um tubo em cada uma das ventas e aspiraram pela ponta mais estreita o pó das pranchetas esculpidas em forma de onça, de cobra e de tatu. O Pajé, de olhos cerrados, entoou aquilo que parecia ser uma oração, expelindo o fumo para o centro do círculo da fogueira, orientando-o com gestos ritualizados. Uraçá soube que partilhava um momento sagrado de comunhão com os espíritos e, a medo, aspirou um pouco de pó. Não sentiu nada além de uma ligeira comichão no nariz e, mais tranquilo, continuou a participar da cerimónia, imitando os gestos dos seus companheiros.
A pouco e pouco, um doce torpor foi-se apoderando dele e sentiu-se leve como a pequena ave de rapina de que recebera o nome, com uma ânsia de voar a impeli-lo para fora do corpo, como se buscasse a sua natureza verdadeira. Quis falar, perguntar o que se estava a acontecer, se o tinham envenenado ou se o iam matar, mas a sua garganta não lograva formular palavras, apenas gritos agudos de uma ave de rapina. 
E, de súbito, o uraçá dentro dele bateu as asas, libertando-se do corpo adormecido para se lançar veloz como uma seta em direcção aos céus onde o sol brilhava por sobre a floresta. Cruzava os céus, captando novos odores na humidade do ar, sons que nunca antes distinguira e o seu olhar penetrante abarcava o mundo com uma intensidade jamais vivida.
De muito alto viu na praia as naus e as caravelas, frágeis pássaros em repouso antes da sua longa viagem para o Oriente. Rodopiou, planando e soltou por três vezes o grito agudo e entrecortado do uraçá quando se prepara para cair sobre a presa, mas, nesse instante, sob o seu olhar aguçado de milhafre, desdobrou-se um imenso pergaminho com a derrota rasgada pelo engenho, sacrifício e coragem dos portugueses. Era um caminho longo de aventura e de fortuna por descobrir, uma promessa de futuro por cumprir. Porém, quando se ia lançar no rumo traçado no grande mapa dourado, um assobio fino e vibrante soou aos seus ouvidos, paralisando-o, puxando-o com uma força irresistível para a terra de onde se havia libertado e Uraçá, sem opor resistência, baixou dos céus e veio pousar suavemente na mão estendida de Igapê.
Gonçalo despertou, assustado, do sonho provocado pela droga, a experiência fora tão real que o grumete ainda tinha no nariz e nos ouvidos os cheiros e os sons da floresta. A fogueira ardia mais fraca e muitos nativos dormiam no chão sob os efeitos do cauim ou do pericá. A filha do Pajé estava ao seu lado, inquieta e atenta ao retorno do seu guerreiro do terrível mundo dos espíritos onde a sua alma, solta pelas ervas dos sonhos, se podia perder em fumos de loucura para não mais volver. Estendeu-lhe a mão para o tranquilizar e saíram da cabana abafada e fumarenta para a frescura da noite.
Depois, houve jogos na lagoa, o luar matizando de prata os corpos de cobre… depois Uraçá rodeou o delicado pescoço da filha do Pajé com o fio de contas de vidro que, à luz da lua, ganharam o tom vermelho-escuro dos seus lábios. Cheia de emoção, a menina-mulher acariciou o colar de desposada com que o estrangeiro selava a sua união, admirando os seus poderes para, sem conhecer a língua do seu povo nem os seus costumes, ter adivinhado o ritual mais secreto das mulheres tupi.
Por isso Igapê lançou um canto exultante em direcção ao luminoso rosto da Lua, a Mãe da noite e dos sonhos, celebrando com os seus companheiros os sons da floresta, imitando a voz do sabiá e do saixé[59], os gritos dos caçadores e os lamentos de agonia da presa ferida. E Uraçá, enternecido e feliz pelo prazer que ela mostrara ao receber um presente tão mesquinho, ergueu também a voz na noite, cantando a alegria de ter de novo a seu lado a formosa nativa de pele de canela e longos cabelos a cheirar a baunilha.
Na floresta fazia-se silêncio, pois nem os terríveis caa-pora ou mesmo os irrequietos curupira[60], esses espíritos malignos da mata sempre prontos a acometer os humanos, ousavam perturbar a beleza do momento.
Depois, na rede de dormir, os gestos de ternura falaram melhor do que todas as palavras.

Cap. VII
Postos a ferros

O trabalho nas bombas era o maior castigo dado numa nau, pior até do que os açoites públicos no convés. Por isso estava reservado aos escravos e cativos mouros, apresados durante os combates no mar e nela postos a trabalhar até à morte que não tardava a chegar com o esgotamento, o calor e o desespero das grilhetas. Gonçalo e Mateus jaziam acorrentados no porão, numa escuridão quase total. Sabiam ser dia só pela réstia de luz coada através das ripas do alçapão que dava para o convés inferior, por cima das suas cabeças, porém à noite, e apenas nas raras ocasiões de serviço, um toco de vela encerrado numa gaiolinha de metal, por causa dos fogos, lhes vinha rasgar as trevas.
As dores no corpo e, acima de tudo, a revolta contra a injustiça e os caprichos da sorte ou do alvedrio[61] dos capitães, mais inclinados a ouvir os seus iguais em estado do que a conhecer a verdade se esta vier da boca de um moço grumete, mantinham Gonçalo desperto e tenso como a corda de uma harpa prestes a rebentar. Ouvia a respiração pesada do Campanário, deitado a seu lado no chão imundo do porão da naveta de mantimentos e invejava-lhe o sono, embora se sentisse culpado por ter arrastado o amigo para aquela situação, ligando-o irremediavelmente ao seu destino.
Tinham sido presos na nau capitânia, na tarde de quinta-feira, acusados de roubo e traição por Martim Pereira, o chefe dos rufiões que preparara cuidadosamente o golpe e fizera bem as jogadas, aproveitando-se das suas estadias em terra e de um descuido de Mateus. O meliante gozava de poderes para os mandar pôr em ferros à bomba da naveta de Gaspar de Lemos, que estava a ser despejada e preparada para voltar a Portugal a fim de dar a El-Rei a nova do achamento da Terra de Vera Cruz. Nela seriam transportados para o reino onde, se já não tivessem morrido no duríssimo trabalho, os esperariam a prisão, o laço do garrote e o esquartejamento.
Martim Pereira preparara-lhes a cilada e eles tinham caído nela como uns tolos, por sua própria culpa, pois desde aquela noite de lua cheia passada na oca de Jacaúna não conseguira pensar em mais nada senão em Igapê. Recordar o rosto doce e belo da amada fez Gonçalo esquecer as grilhetas e o porão e sentir de novo os cheiros bons da floresta e os dedos do vento no seu corpo nu quando, dias antes, perseguira com Pahanjara e Jabuti uma onça…
***
…Manhã cedo, na segunda-feira, partira com os irmãos de Igapê e outros caçadores da taba para a floresta. Nu e com todos os sentidos despertos, procurava imitar os companheiros que se deslocavam leves e rápidos como sombras silenciosas pela selva densa e húmida, captando sons, cheiros, ruídos quase imperceptíveis ao ouvido humano, na mais íntima comunhão com a Terra. Uraçá caminhava com passos furtivos, buscando a presa desprevenida, mas sempre um galho estalava sob os seus pés descalços, um pássaro fugia num espalhafato de gritos e de asas quando a sua cabeça batia num ramo invisível. Jabuti, sem uma palavra, veio pôr-se a seu lado para o ensinar com o seu exemplo.
E, por fim, o estrangeiro foi absorvido pela imensidão da selva, como se o seu corpo branco se diluísse na ténue bruma suspensa das árvores que sempre vira nas madrugadas que passara com Igapê. E sentiu de novo o espírito do uraçá que o habitava debater-se dentro do seu corpo, na ânsia de se soltar para se lançar nos ares e cair como um raio sobre a presa, cujo odor lhe dava agora em cheio nas narinas.
 – Jaguaretê! – murmurou Jabuti a seu lado, também excitado pela proximidade da fera.
Uma onça dourada!” traduziu mentalmente o grumete e sorriu de satisfação: “Que peça formidável!”. E, de repente deixou de ser Gonçalo, o Assanhado, Uraçá ou mesmo um homem, para se tornar num temível predador atrás da sua vítima, aproximando-se dela a favor do vento, silencioso e invisível como um fantasma e, logo, com o coração a bater forte e o sangue a latejar nas fontes, desferir com o arco a seta embebida em curare e perseguir em corrida veloz a onça ferida, alcançando-a enfim para lhe dar o golpe final.
De regresso à taba, com as presas suspensas em grossas canas carregadas aos ombros e tendo a onça como principal trofeu, os caçadores foram de súbito imobilizados por um formidável rugido, ali bem perto, que quase lhes gelou o sangue nas veias.
– Que cousa é esta? – perguntou Uraçá em português, rasgando o silêncio absoluto da selva que parecia ter deixado de respirar.
– Jaguara! – sussurrou ainda mais baixo Jabuti e os seus olhos escuros tornaram-se ainda mais negros.
Jaguar, “o que mata de um salto”, se o meu traslado me não engana! – murmurou Gonçalo, entre dentes, com um arrepio a percorrer-lhe a espinha ao lembrar-se de que os portugueses chamavam tigre a esta alimária e tigre, segundo os mais velhos, era o bicho mais perigoso e mortífero que algum caçador podia encontrar no mundo.
Pahanjara acercou-se deles para trocar algumas palavras com o irmão. Era o melhor caçador da tribo e sabia que quando o rei da selva boceja e atroa os ares com o seu formidável rugido, o silêncio desce pesado de medo, a preguiça imobiliza-se nos ramos mais finos das árvores, para que os líquenes que lhe crescem no pêlo a transformem num monte de verdura, os tapires e as capivaras correm a esconder-se entre o mato ou nas tocas, os pecaris ou porcos selvagens agrupam-se na defensiva e os caimões deslizam lestamente para a água, porque o temido predador vai dar início à sua caçada e nenhum animal ou homem está a salvo pois não há presa que ele desdenhe.
– Jaguara! – disse Pahanjara a Uraçá, com um sorriso, tocando na sua cicatriz e o estrangeiro compreendeu que o jaguar e o caçador eram velhos inimigos.
Jabuti sabia da ânsia do irmão em conquistar o trofeu que lhe faltava, ao vencer a criatura que pela astúcia, força e agilidade fora feito totem da sua tribo e quase o matara há tempos atrás, para receber com a sua morte o espírito indomável que o habitava. Então ofereceria a pele ao Xamã Jacaúna e mudaria o seu nome para Jaguara, o que mata de um salto. Mas tinha de o fazer sozinho, numa luta singular, embora pudesse levar consigo dois companheiros para testemunharem a sua coragem e cantarem a sua vitória ou recolherem os restos mortais para os levar à taba dos seus antepassados e Pahanjara já tinha escolhido Jabuti e Uraçá para o acompanharem.
Os dois irmãos lamentavam não poder explicar ao estrangeiro como o honravam ao convidá-lo para partilhar com eles o momento quase sagrado, mas sabiam que, de toda aquela gente vinda nos grandes pássaros de madeira, ele era talvez o único de alma pura, pois não podiam esquecer que, na cerimónia do pericá, Tupã lhe concedera o dom da visão e da transfiguração. Deixaram os restantes caçadores à espera, sentados na camada de folhas que cobria o solo, com a caça ao lado, o grumete apressou-se a seguir os amigos cuja gravidade lhe mostrava que pretendiam fazer algo importante e maldizia-se por não entender a sua língua.
Caminhavam em silêncio, na direcção de onde partira o rugido, os dois nativos atentos aos sinais do chão e das árvores. Jabuti, de repente apontou para o grosso tronco de uma ubiratinga onde se viam dez fundas estrias feitas por poderosíssimas garras muito acima das suas cabeças. Da garganta de Pahanjara saiu um tremendo rugido, que fez estremecer Gonçalo, pois fora em tudo semelhante ao que ouvira ao tigre ou jaguar, como lhe chamavam os gentios, ouvido momentos antes. A resposta não se fez esperar e a voz do predador ecoou mais perto e ameaçadora e toda a selva pareceu vibrar de tensão como uma corda prestes a rebentar. Mas o animal não se mostrou e os caçadores avançaram quase tão lentos e silenciosos como a preguiça , até aos bordos de uma pequena clareira deparando com uma cena que deixou Uraçá sem pinga de sangue. Um jaguar de cerca de dois metros de comprido defrontava a mais estranha criatura que os seus olhos haviam visto até àquele momento.
– Tamanduá[62]! – sussurrou Jabuti para Uraçá, ao mesmo tempo que olhava para o irmão que parecia contrariado.
 Era um animal do tamanho de um galgo mas muito robusto, com um rabo peludo mais comprido do que o corpo, com as sedas[63] cinzentas, grossas e longas como as dos cavalos, e uma faixa preta bordejada a branco desde a face até ao peito. Estava de pé sobre as patas traseiras semelhantes às de um urso, a cabeça pequena e alongada por um focinho em forma de funil fazia-o parecer maior. Uma língua de três ou quatro palmos, redonda e grossa como uma minhoca, agitava-se de fúria e a cauda erguia-se por cima da sua cabeça como um leque de plumas. Com os braços lançados para a frente, em posição de ataque, agitava com espantosa destreza as mãos munidas de três garras compridíssimas e aceradas como estiletes diante do rei da selva, como se estivesse a esgrimir.
O jaguar, com as patas dianteiras esticadas, a cabeça baixa e os quartos traseiros erguidos como um gato à caça, rosnava de furor e fome, mostrando no peito ensanguentado que já se aproximara demasiado ou descurara a guarda e não parecia decidido a repetir o salto, embora fosse uma fera portentosa, com uma cabeça tão grande como a de um novilho, de expressão feroz. Gonçalo nunca imaginara poderem existir gatos selvagens daquele tamanho, por mais histórias que tivesse ouvido sobre eles. Era de cor amarelada, mais clara na barriga e todo malhado de rosetas escuras, os olhos brilhantes e a cauda erguida a mover-se lentamente da esquerda para a direita pareciam querer enfeitiçar a presa.
Pahanjara soltou de novo o rugido do predador e o jaguar pareceu hesitar, confuso, sem saber o que fazer e virou a cabeça em direcção ao som. O tamanduá aproveitou a distracção do seu inimigo para baixar as guardas e desaparecer na selva, numa desajeitada e bamboleante corrida das suas quatro patas. Uraçá, contendo a respiração, viu o amigo entrar na clareira para desafiar a fera, tão vulnerável na sua pele nua e desprotegida, levando como armas a faca de pedra à cinta e o arco com as setas. O jaguar fixou nele os olhos amarelados e, por sua vez, lançou o rugido desafiador do senhor do território face a um intruso. Lambeu o sangue do peito e os seus perseguidores puderam ver os lanhos profundos rasgados pelas garras do o urso formigueiro gigante.
Pahanjara imobilizou-se e Gonçalo, apesar do perigo que o amigo corria, admirou a beleza do quadro composto pelo homem e a fera, duas criaturas de formas perfeitas, uma cor de cobre a outra dourada e negra, medindo-se e avaliando-se contra o fundo verde esmeralda da selva. De repente, com um impulso poderosíssimo das patas posteriores, o jaguar saltou, estirando-se no ar, com as garras para a frente, a pata direita ligeiramente inclinada para desferir o golpe que derrubaria o inimigo. Mas a tremenda patada apenas feriu de raspão o ombro do caçador, pois, com igual destreza e rapidez,  apesar do embaraço do arco, Pahanjara atirou-se para o lado, rolou o corpo pelo chão e, pondo-se de pé de imediato, com uma breve e veloz corrida logrou pôr alguns metros de distância entre ele e a gorada fera e preparou o arco.
O jaguar, vendo fugir pela segunda vez a presa, pareceu perder igualmente o interesse na caçada e, lançando de novo o seu rugido assustador, fez menção de abandonar a clareira. Jabuti saltou do seu esconderijo, de arco em riste, mostrando-se ao animal para lhe impedir a retirada e Uraçá fez o mesmo, do outro lado, dominando o medo que lhe fazia o suor escorrer frio pelas costas. A fera, sentindo-se acossada por três inimigos, optou pela fuga e vendo a saída cortada, lançou-se num salto elástico sobre o tronco de uma enorme árvore, amarinhando destramente até à protecção dos grossos ramos, onde se quedou rosnando arrogante e mostrando os dentes ameaçadores.
Pahanjara avançou, com a longa seta posta no arco e parou à distância de tiro. O jaguar tomou a posição de ataque sobre o grosso tronco da árvore. Homem e fera fitaram-se de novo, selando o seu destino: um dos dois teria de morrer. E o jaguar com um ronco surdo lançou-se do alto, os beiços arreganhados expondo os enormes dentes aguçados, as patas dianteiras estendidas com os dedos afastados e as garras de fora, polidas e curvas como minúsculos punhais.
A seta apanhou-o em pleno voo, cravando-se-lhe no coração, imobilizando-o um instante no ar e, com um estremecimento de todos os músculos do corpo, a fera abateu-se aos pés do caçador que acabara de conquistar o almejado troféu que lhe traria a fama e o respeito de todos os clãs. Jabuti e Uraçá correram a felicitá-lo e logo cortaram duas grossas varas, onde suspenderam o pesadíssimo jaguar, prendendo-o com pedaços de cipó, as duras lianas usadas pelos nativos para inúmeras tarefas. Com dificuldade tomaram os varais aos ombros e, com as pernas a tremer sob o peso da carga, seguiram oscilando atrás de um Pahanjara a estoirar de orgulho e felicidade, ao encontro dos companheiros que os esperavam para regressarem à povoação.  
Depois, tinham sido recebidos em triunfo por toda a tribo que veio admirar as belas capturas que o filho do Pajé e o moço estrangeiro tinham depositado aos pés de Jacaúna. Pahanjara relatou em muitas palavras, recheadas de grandes gestos, o feito de Uraçá, Jabuti contou a gloriosa luta do irmão contra o jaguar e, desta vez, Uraçá falou também na sua estranha língua  da vitória do grande caçador Tupi, Pahanjara-Jaguara, escutado com muita atenção e agrado por todos os homens no círculo das fogueiras que se não podiam entender as palavras compreendiam os gestos e as entoações da voz do filho adoptivo de Jacaúna.
O Pajé fizera então um longo discurso de que Gonçalo apenas percebeu meia dúzia de palavras e o seu nome de caçador ligado ao de Pahanjara e por isso soube que lhe era concedida uma grande honra, tanto maior por ser estrangeiro e sentiu-se muito orgulhoso. Viu Igapê entre os ouvintes e leu adoração nos seus olhos. As façanhas do emboaba e do maior caçador da tribo iriam ser festejada por todos nessa noite, na festa das fogueiras, e Uraçá receberia a sua primeira pena de tucano, como todo o moço do clã que desse provas da sua virilidade.
Depois de comer, tinham ido para a praia ajudar os portugueses a encher os barris de água na nascente e a transportá-los para os batéis, a pescar e a salgar o peixe ou a  colher os frutos das árvores em grandes cestos que os estrangeiros levariam no bojo dos seus navios. Os descobridores de novos mundos e os homens da floresta andavam misturados nas tarefas, já sem desconfiança ou medo, jogando e competindo uns com os outros como se fossem velhos conhecidos. Gonçalo vestira as bragas, mas mesmo assim teve de suportar os chistes dos companheiros até o Campanário aparecer e pôr cobro à surriada.
– Ó Assanhado, trazes as mesmas cores ou ‘tás pintadinho de fresco?
– Olhem-m’aquela pele sem um pêlo! Nã tem dúveda, inté parece mais moça que moço!
– Quem foi que te fez a barba, ó Assanhado, qu’ eu também ando precisado de barbeiro?
– Já basta os capitães deixarem o rapaz de manhã à noite nas mãos dos selvages que lhe fizeram este lindo serviço? – O Campanário continuava desconfiado quanto às boas intenções do povo pardo para com o amigo. – Inda vos burlais dele com tanta ruindade?
– Ó home, nã t’amofines, qu’isto é só manganice! A gente ‘gosta do Assanhado
– É a inveja que vos faz falar – dissera Gonçalo, sorrindo sem zanga.
– Ora aí é que tens razão! Que a gente anda a dormir em naviarras malcheirosas e tu em redes perfumadas...
A chegada de Diogo Dias com Afonso Ribeiro e outros dois homens degredados pôs fim às brincadeiras dos matalotes. O Capitão disse:
– O Capitão-mor quer que nos leves a passar a noite na aldeia dos teus amigos emplumados.
– Leva também o gigante ferreiro, p’ra irmos mais descansados – acrescentou o degredado.
Campanário não pareceu muito encantado com a ideia do outro, mas não disse nada. Tão pouco Gonçalo ficou satisfeito. Não podia desobedecer a uma ordem do Capitão-mor, mas não sentia o mínimo desejo em levar homens condenados à morte por crimes cometidos no Reino até à taba do clã de Jacaúna, uma gente boa e confiada que o adoptara como um filho.
– Senhor Capitão, ainda conheço mal os seus usos… – murmurou.
Diogo Dias percebeu o medo do grumete e apressou-se a sossegá-lo:
– Levamos presentes e tudo faremos para não os molestar.
Afonso Ribeiro disse também com um sorriso:
– Tu nos mostrarás como devemos fazer para respeitar os seus costumes.
Gonçalo acabara por conhecer a história deste degredado que, embora condenado à morte, não era um criminoso como os outros. O seu crime até lhe conquistara a admiração dos matalotes, pois dera cabo do fidalgote que lhe desrespeitara a mulher, mas como era um Zé-ninguém e se atrevera a pôr a mão num fidalgo e o matara, dera logo forca. Só escapou dela por se ter oferecido para as naus, a fim de ser dos primeiros a desembarcar a ver do perigo ou a quedar-se nas terras estranhas a viver com os nativos, aprendendo a língua e os costumes. Era um homem de poucas falas mas o Assanhado sentiu que lhe fazia uma promessa e ficou mais descansado.
***
Agora, acorrentado no porão, Gonçalo perguntava a si próprio se o velho feiticeiro não teria razão para ter medo. A cobiça dos reis pelo ouro e pela prata – contara-lhe seu pai – já dera causa à destruição de muitos povos e de lugares tão belos e misteriosos como aquele. No Domingo anterior, vira como Jacaúna tentara fazer-se entender pelo Capitão-mor, junto do rio, chegando a tirar a Pedra Verde do seu lábio para a pôr na boca de Cabral, o que muito divertira os portugueses, mas o grumete reconhecera naquele gesto um enorme sacrifício do velho feiticeiro, cujo medo aos estrangeiros e aos desastres que eles não deixariam de trazer aos Tupiniquins o levara a querer abdicar dos seus poderes em favor do temível chefe dos Emboabas.
Gonçalo tinha dificuldade em manter o fio dos seus pensamentos, com as correrias e guinchos das ratazanas a explorarem o porão, esvaziado das sacas e caixas de alimentos. A angústia subia-lhe de novo à garganta prestes a sufocá-lo. Doía-lhe acima de tudo partir sem ver Igapê, sem lhe poder contar a verdade ou dizer-lhe adeus. Por isso queria guardar na memória todos os momentos passados naqueles cinco dias, gravá-los como num livro para os reviver enquanto o deixassem vivo:
Na taba, os hóspedes haviam sido recebidos com todas as honras e o Assanhado de novo na sua pele de Uraçá viu, cheio de contentamento e gratidão, Diogo Dias tratar o Pajé Jacaúna e os moacaras, os principais membros do clã, com o acatamento devido a um Príncipe e a Grandes Senhores, oferecendo ao feiticeiro uma camisa mourisca e um sombreiro de plumas e dando aos outros chefes presentes de pouco valor – cascavéis, carapuças vermelhas e folhas de papel – mas que os encheram de espanto e lhes deram grande prazer. Jacaúna entregou ao Capitão uma formosa capa feita de penas de muitas cores.
– Este é um presente digno d’El-Rei D. Manuel! – bradou Diogo Dias encantado com a oferta e curvando-se diante do Pajé. – O Capitão-mor por certo o há-de querer enviar a Sua Majestade.
O Pajé sentara a seu lado Diogo Dias para a refeição da noite e os três degredados tiveram lugar de honra entre os principais moacaras, vestidos com os seus ornamentos de festa. Jacaúna sentia que alguns destes estrangeiros eram de nobre coração, como aquele que sentara à sua esquerda, mas os espíritos diziam-lhe que outros iriam chegar e o seu povo sofreria. Por isso tentara dar a Pedra Verde do Poder ao Grande Chefe dos Emboabas, para que, satisfeito, se fosse para sempre da sua terra, mas ele não era um homem escolhido de Tupã e não sentira vibrar o coração da Pedra, antes a recusara como se de um malefício se tratasse. O ancião suspirou, saudoso da sua juventude de formidável guerreiro quando expulsara muitas tribos inimigas dos seus territórios. Mas, agora, se o Deus do Trovão não ouvia os rogos do seu Pajé, ao velho xamã[64] só restava aceitar, resignado, o seu destino.
O Campanário não quisera arredar pé do sítio onde estava o Assanhado, entre os mais jovens caçadores do clã, e comia as peças de carne assada com os inhames fumegantes, bebendo grandes tragos de cauim, uma estranha bebida fermentada de agradável sabor. Parecia já menos desconfiado, talvez devido ao vinho ou por estar a ser servido pelas duas primas mais velhas de Igapê, maravilhadas com o tamanho de Mateus. A presença do amigo entre o povo pardo mostrara ao Assanhado como esta raça era graciosa, com gente de bons corpos, no entanto nem o mais forte caçador da taba lograva chegar ao ombro do Campanário. Depois da refeição, a um sinal do Pajé, as mulheres foram buscar as cangoeiras da erva-santa para o fumo da amizade com os Portugueses e Gonçalo, por zombaria, não os preveniu daquilo que os esperava, apenas trocou um olhar cúmplice com Pahanjara e Jabuti que esconderam o seu sorriso.
– Ó mê capitão, os homes são doudos! Onde se viu tal cousa?!
– Atão nã é que metem o rolo em brasa pela bocarra dentro!!!
– Calai-vos e fazei o que eu fizer, sem má cara ou desprazer – ordenou o Capitão.
Jacaúna passou a cangoeira ao seu hóspede e Diogo Dias recebeu-a sem hesitar e sem mostras de desagrado ou receio. Sempre aceitara as cerimónias de outros povos, participando nelas com alegria quando lho permitiam e, mesmo se o assustavam ou lhe desagradavam, tudo fazia para esconder as suas emoções. Se em certos lugares de África já comera insectos vivos e na Índia tinha mascado bétele[65], por certo lograria vencer também aquela provação.
– O mê capitão vai-se esbrasear! Nã faça isso, mê Senhor!
Mas Diogo Dias levou o rolo à boca e puxou o fumo, como vira fazer ao velho xamã, procurando não se engasgar nem queimar, soltando-o em seguida pelo nariz. Sentiu-se todo a arder por dentro, porém, com enorme esforço de vontade, conseguiu dominar a tosse e as lágrimas provocadas pelos olhos a picar e passou a cangoeira ao parceiro do lado.
– Ó mê capitão, eu cá nã faço isso qu’é cousa do demo!
– Ah, isso é que fazes! – O capitão dava a ordem sem altear a voz e continuando a sorrir, para que os nativos não se apercebessem da recusa dos seus homens.– E sem mostrares temor ou desagrado, para verem que nada faz medo ou espanto aos portugueses.
Afonso Ribeiro, calmo e sorridente, fumou a cangoeira como um nativo, com um “Isto até nem é mau de todo!”, mas nem mesmo a ordem do capitão Diogo e o medo do castigo conseguiram evitar que os outros dois degredados se engasgassem e tossissem, fazendo rir os seus hospedeiros. Uapê e Arati prepararam com ternos cuidados uma cangoeira para o gigante emboaba que as enchia de admiração e trazia em grande alvoroço, fazendo-as ignorar as atenções dos seus pretendentes, tal como a prima fizera. Seriam felizes se o gigante branco escolhesse as duas para esposas, pois sempre haviam partilhado tudo na vida e não havia razão para não partilharem o amor do marido entre ambas, em vez de o fazerem com mulheres de outros clãs. Por isso lhe estenderam ao mesmo tempo a cangoeira acesa, para que ele percebesse que estavam prontas para o amor e para o servir como esposas. Mateus recebia embevecido as atenções das duas beldades:
– Diz-me que não estou a sonhar, Gonçalo! Que fiz eu para merecer tal sorte?!
– Já não desconfias deles, Mateus? Não tens medo que te cortem a garganta?
– Como podia eu adivinhar que estava no Paraíso? – e, sorrindo enlevado para Uapê e Arati, meteu na boca o fino rolo de ervas e puxou uma longa fumaça, como se em toda a sua existência não houvesse feito outra coisa:
– Não há vida melhor do que esta! Quem me dera poder quedar-me aqui!
Gonçalo sentiu que as palavras do amigo eram como um eco do seu próprio desejo e sorriu com melancolia, olhando o rosto suave e terno de Igapê. Por fim os nativos cantaram e dançaram as suas danças de caça e de guerra, para mostrarem aos estrangeiros como eram bravos e fortes e os portugueses bailaram com eles até à hora de partirem, pois só a Uraçá – o homem dos dois povos – era permitido quedar-se na oca.
***
O Campanário agitou-se no sono, gemendo e o grumete foi arrancado às suas recordações. Mateus tinha sido brutalmente espancado pelos três rufiões a mando de Martim Pereira, aproveitando um momento em que havia muito pouca gente a bordo, pois só com o gigante desacordado poderiam acercar-se do Assanhado sem perigo nem estorvo e conseguir os seus fins – apanhar o mapa e livrar-se ao mesmo tempo de uma testemunha embaraçosa. Ser posto a ferros naquelas condições teria dado cabo de qualquer um, mas o ferreiro era feito de outra massa, forte como Vulcano.
– Umas horas de sono e fico como novo – dissera nessa mesma noite. – Amanhã eles que se cuidem!
Gonçalo sorrira na escuridão. Mesmo recuperando as forças, que poderia ele fazer preso com cadeias à bomba ou a uma grossa argola de ferro, como agora, no porão de uma nau? Todavia não dissera nada, para não o minar com o seu desespero. Vendo-o respirar mais calmo, encostou-se à viga que o amparava e pousando a cabeça nos joelhos, esgotado de angústia, deixou o seu espírito evadir-se de novo...
Aquela terça-feira fora um dia de muito trabalho em terra, pois havia mister de lavar roupa no rio, cortar e armazenar lenha e, a pedido do Padre Henrique, fazer uma grande cruz de madeira para assinalar a passagem da Armada por aquele paraíso. Os nativos ajudavam no corte e transporte da lenha e o Capitão-mor ordenou que se fizesse uma carga de pau-brasil para enviar ao reino. Tribos aparentadas ao clã de Jacaúna tinham vindo das suas tabas mais afastadas para ver os estrangeiros, admirar os seus feitiços e trocar com eles os presentes da amizade. Eram mais de duzentos, andavam desarmados e o Assanhado admirava-se do modo confiante e brincalhão como se davam com os portugueses, indo nos batéis, entrando e saindo das naus com perfeito à-vontade.
Cabral queria partir para a Índia no Sábado, dia 2 de Maio, a fim de não perder a monção[66], mas precisava de mais informações da terra para enviar a El-Rei D. Manuel e Gonçalo recebera ordens de Diogo Dias para vir buscar o grupo e levá-lo de novo à aldeia dos seus amigos, a ver se desta vez os deixavam passar lá a noite como desejava e insistia o Capitão-mor. Foram novamente recebidos como hóspedes amigos e tudo se passou como no dia anterior, com Mateus cada vez mais confiante e cativado por Uapê e Arati que lhe pagavam na mesma moeda, servindo-lhe os melhores bocados do assado de tatu e as frutas mais saborosas.
Quando chegou a hora de Jabuti e Pahanjara levarem os hóspedes carregados de presentes aos batéis, ninguém logrou despertar o Campanário de uma terrível bebedeira causada pelo cauim que durante toda a noite as duas moças não tinham cessado de lhe deitar na taça de casca de coco. Os portugueses viram ali um bom pretexto para  passar a noite na taba, mas apesar da sua insistência para lá dormirem o Pajé não consentiu, pois os estrangeiros tinham a pele branca como a dos espíritos dos antepassados mortos e Jacaúna temia que eles fossem criaturas enviadas por Anhangá, o espírito maléfico das trevas, para trazer ruína e morte ao seu clã. Assim, resmungando protestos face à firme recusa dos nativos, Diogo Dias e os seus companheiros recolheram às naus, sendo o Campanário transportado numa rede por seis dos mais fortes caçadores da tribo.
Na quarta-feira, Pedro Álvares Cabral passara quase todo o dia na naveta de Gaspar de Lemos, assistindo ao despejar dos mantimentos e sua distribuição pelos outros navios, por isso, com grande pena da marinhagem, só Sancho de Tovar foi a terra com um recado de Pêro Vaz de Caminha ao Assanhado para ir no dia seguinte pela manhã à nau capitânia, pois o escrivão queria registar na carta d’El-Rei as impressões dos últimos dias passados nas Terras da Vera Cruz e desejava ver os dois irmãos seus amigos, para melhor os descrever a Sua Alteza.
O grumete olhava preocupado o batel a afastar-se, levando Itâna e Taari, dois dos guerreiros mais fortes do clã que o sota-capitão convidara para passar a noite na sua nau. Cada vez se sentia mais pertença da tribo e com maior desconfiança quanto às futuras intenções dos portugueses para com a sua gente. Temia que alguns dos seus amigos fossem raptados e levados à força para o reino, a fim de serem exibidos como animais raros. Gostaria de quedar-se com eles para sempre, viver como caçador ou guerreiro, amando Igapê na lagoa da floresta. Com estes pensamentos encaminhou-se para a taba de Jacaúna
Quer na taba quer na oca já ninguém estranhava a sua presença, desde que não aparecesse em trajos de marinheiro e Uraçá tinha o cuidado de se despir e esconder as roupas antes de entrar na aldeia. Todos sabiam que ele amava a filha do Pajé e por isso vinha servir na oca do feiticeiro e competir com os outros pretendentes pelo prémio cobiçado – Igapê, a mais bela flor da floresta. Embora fosse uma criatura estranha, oriunda de terras distantes e sem clã, estavam dispostos a aceitá-lo se essa fosse a vontade de Jacaúna e da moça (já não era segredo para ninguém que Igapê dera estrangeiro a flor da sua virgindade, chegando mesmo a afastar pretendentes que serviam o Pajé há muitas luas, quando o camucim[67] de sua filha guardava apenas doze castanhas de caju, uma por cada ano de sua vida, mas a menina era já uma promessa de beleza. Agora, sendo catorze o número de castanhas na cabacinha, Igapê tornara-se o orgulho da taba e fora a virgem mais cobiçada de toda a tribo.
Uraçá partia com os seus amigos para a caça e para a pesca e, tal como eles, vinha depor o fruto do seu trabalho aos pés do velho chefe. Em tão curto tempo aprendera a remar na igara[68] que deslizava veloz como um boto[69] na corrente do rio e a equilibrar-se na jangada de troncos enquanto disparava as longas setas do seu arco, através da superfície enganadora da água, até ao alvo movediço e escorregadio dos grandes peixes. Pahanjara e Jabuti eram seus mestres e seus cúmplices, prontos a darem a vida por ele mas exigindo-lhe o esforço e a bravura de um verdadeiro herói. E, na ânsia de poder conversar com Igapê, Uraçá aprendia ainda mais depressa a doce e poética língua tupi.
***
Pensar na partida, dentro de dois dias, punha-lhe um nó na garganta. Não soubera o que dizer quando Igapê, na noite anterior, vendo da praia os archotes acesos das naus, lhe perguntara por gestos, com os olhos sombrios de angústia, quando partiria. Calara-se perturbado e agora doía-lhe mais a saudade de não voltar a vê-la do que a sentença de morte a esperá-lo em Lisboa, apesar da sua inocência. Martim Pereira levara a sua avante e ainda receberia alvíssaras pela traição. O maldito espião tinha as costas quentes, com um documento assinado por El-Rei dando-o como oficial d’armas da confiança de Sua Alteza e que ele mostrara ao ser apanhado com o mapa na mão. Fora a sua palavra, confirmada pelos três ajudantes, contra a de um grumete sem testemunhas e o Assanhado perdera…
Nessa manhã de quinta-feira, Gonçalo fora transportado num batel com Pahanjara e Jabuti à nau capitânia e, mal entrou, viu Itâna e Taari sentados à mesa dos capitães, que se preparavam para ir a terra, comendo lacão[70] cozido com arroz e bebendo como fidalgos. O grumete conduzira os amigos até aos aposentos de Caminha, no castelo da popa. Durante mais de uma hora contara episódios, descrevera lugares, gentes e objectos ao escrivão, respondendo às suas intermináveis perguntas, enquanto ele observava os dois nativos, oferecendo-lhes de comer e de beber como a hóspedes de cerimónia. O escrivão vivia rodeado de livros, de penas e tintas de escrever, num espaço onde mal se podia mexer e os dois irmãos foram imediatamente cativados pelas folhas de papel, umas já cheias da letra delgada de Caminha, outras ainda brancas à espera das palavras. Quando Uraçá falava e o secretário molhava a pena de pato na tinta, rabiscando alguns apontamentos, os nativos tomavam a folha na mão, olhavam e cheiravam a tinta, com se estivessem ante um milagre ou um feitiço.
– Quando soubermos a sua língua ou eles falarem a nossa, logo se tornarão cristãos, pois parecem bons e de espírito vivo.
 – Mestre Caminha – perguntara Gonçalo a medo, apontando os amigos –, vão levar alguns deles para o Reino? Habituados a ser livres, morrerão…
– Não, podes ficar descansado – interrompera-o, sorrindo, o secretário, compreendendo a preocupação do moço grumete. Gostava do rapaz, pois parecia sensível e inteligente e tinha um excelente espírito de observação, descrevendo as suas experiências com palavras precisas e estilo fluente, quase cultivado. – Os capitães determinaram em Conselho não fazer qualquer violência sobre esta gente, que é gentil e boa para se fazer  cristã.
– Folgo muito de vos ouvir, Mestre Caminha, pois este povo tem confiado em nós e não gostaria nada de os ver traídos.
– Serão cá deixados dois degredados para viverem com eles e aprenderem a língua. Podes recomendá-los aos teus amigos para que sejam bem tratados.
– Assim farei, meu senhor.
– Tens alguns estudos, moço? –  perguntara Caminha numa súbita inspiração:
– Sim, mestre, leio e escrevo em português e latim.
Meu Deus, que sorte a sua! Tal como julgara, o rapaz não era um zé-ninguém dos becos de Lisboa, mas um moço de boa formação e o escrivão precisava de um ajudante para lhe tomar apontamentos dos lugares e das gentes que iriam descobrir. Olhara-o com simpatia e perguntara:
– Queres ser meu escrivão-ajudante, durante o resto da viagem? Serias aliviado das tarefas de grumete…
– Oh! sim, mestre! – respondera sem hesitar. – Eu vos ficarei para sempre obrigado.
 – Trataremos disso durante a viagem e me contarás onde e como fizeste teus estudos.
Gonçalo saíra dos aposentos de Mestre Caminha com os dois indígenas, já impacientes por se verem fechados há tanto tempo nessa espécie de gaiola malcheirosa e depararam com uma multidão azafamada de matalotes e nativos a carregarem a nau com fardos, barris e sacas de mantimentos, despejados da naveta de Gaspar de Lemos e que o Capitão-mor mandara distribuir por todas as naus. E o Assanhado não pudera deixar de rir, vendo como a “ajuda” dos homens pardos aos marinheiros causava mais atrapalhação do que prestava serviço. Pahanjara e Jabuti deixaram-no e foram juntar-se ao grupo de ajudantes, muito divertidos com o trabalho e o grumete aproveitou a ocasião para ir falar com o Campanário.
***
As sombras tornavam-se mais claras no porão, sinal de que o dia começava a nascer, mas Gonçalo não conseguia dormir. Mais do que as cadeias de ferro nas mãos e nos pés, pesava-lhe a dor de perder Igapê e o sofrimento e vergonha que iria causar a sua mãe, em Lisboa, ao ser condenado e justiçado pelo crime de traição. Quanta vezes se arrependera de não ter denunciado o padrasto, mas pensara na mãe, na vergonha que ela sentiria por ser mulher de um traidor sentenciado à morte e na mancha que isso seria na sua honra, e preferira fugir.
Afinal a desonra era agora dele e ainda faria sofrer mais a mãe quando o chegasse a saber. Acreditaria nas mentiras que lhe diriam dele ou recusar-se-ia a pensar que o filho de João Lourenço era um traidor, incapaz  de respeitar a memória de seu pai? O grumete, para afastar essas imagens que o desolavam, procurava relembrar todos os pormenores da sua prisão, os erros cometidos e se por ventura poderia ter agido de outro modo e desmascarado o espião:
Mal saíra da estância de Mestre Caminha, andara pela nau à procura do Campanário que ainda ninguém tinha visto nesse dia. Estranhou não o encontrar à sua espera e sentiu essa ausência como um mau agouro. Tão pouco vira Martim Pereira e os seus sócios.
– O teu amigalhaço precisa de ti! ‘doente…
Falai no mau… Era um dos malandrins. Alguma coisa sucedera a Mateus!
Que lhe fizeram? – perguntou aflito. – Onde está ele?
O outro soltou um riso escarninho e afastou-se sem lhe responder. Gonçalo lançou-se em corrida para o dormitório da marinhagem, por baixo do tombadilho. Doente? A única doença de Mateus, em toda a sua vida, fora o mareio na nau.
Avistou o amigo deitado na esteira, no canto mais escuro do recinto, sem se mexer.
– Mateus! – gritou, assustado. – Que tens, Mateus?
De pé, encostado a uma das pesadas vigas de madeira, Martim Pereira tinha um ar vitorioso e um sorriso cruel rasgou-lhe o rosto, quando o viu chegar. Os outros dois valentões estavam sentados, um à cabeceira e o outro aos pés do Campanário, prendendo-lhe as pernas e, junto deles, três pesados cacetes não deixavam dúvidas quanto às suas intenções.
– Temos de praticar sobre um assunto sério – disse a voz arrastada do espião –, e o teu amigalhaço recusou-se a ouvir. Tivemos de o aquietar.
Não havia ninguém por perto, com toda a agitação de mudanças e desembarques. Gonçalo viu pelas marcas roxas e manchas de sangue no rosto que o amigo fora barbaramente espancado. Os meliantes também não tinham saído ilesos da contenda, pois as caras inchadas e o nariz partido de um deles mostravam como o Campanário se defendera bem. Cerrou os punhos e bradou:
– Malditos sejais! Que quereis de nós?
– Vem mais assanhado que de costume!
– Deve ser da vida c’os selvagens!
– O Assanhado agora chama-se Sarapintado! – disse um dos algozes, carregando nas pernas de Mateus que, mesmo desacordado, gemeu de dor.
Sem ouvir as graçolas e os risos, o grumete gritou desesperado:
– Que lhe fizestes? E porquê?
– A carta de marear que roubaste ao teu padrasto, ladrãozeco  a voz de Martim Pereira sibilou como um chicote. – É só isso que eu quero. Ou me dás a carta ou ele morre.
Gonçalo estava encurralado, sem poder pedir socorro pois atrás de si já se postara o patife que lhe dera o recado e se tinha vindo juntar à companhia, cortando-lhe a retirada e impedindo qualquer marinheiro de se aproximar.
– O cabeçudo tem cabeçorra de pedra! Só se veio abaixo à terceira cacetada!
– Agora vai ser mais fácil, porque o trabalhinho ‘ meio feito!
– Depois, basta atirá-lo borda fora. Inté já temos ajuda.
Martim Pereira aproximou-se enquanto o seu ajudante saltava sobre Gonçalo, agarrando-o por trás e imobilizando-o. Mal tivera tempo de se defender quando um murro, desferido com violência pelo chefe do bando, lhe acertou em cheio no estômago fazendo-o dobrar-se em dois, mas apesar do mareio não vomitou. A vida no mar e os últimos dias na floresta com os caçadores de Jacaúna haviam-no tornado mais forte, porém não o suficiente para se desembaraçar de dois homens corpulentos.
A carta?! – insistiu o chefe.
– Sois traidor, como o meu padrasto. Nunca vos darei o mapa!
Novo soco, desta vez no ventre e Gonçalo sentiu um suor frio escorrer-lhe pelo corpo. Dizer-lhes onde escondera o mapa seria morte certa para si e para Mateus, pois mal os patifes deitassem a mão ao precioso pergaminho, os dois grumetes deixariam de ter qualquer valor para Martim Pereira que nunca se arriscaria a deixar escapar com vida as testemunhas da sua traição. Gonçalo não podia ceder! Nunca mais, pensou cerrando os dentes e recordando a sua jura antes de sair de Lisboa, nunca mais!
– O teu padrasto é apenas um peão neste jogo de xadrez. Mas chega de conversa! A naveta parte amanhã e quero que a carta de marear vá nela.
Os golpes sucederam-se, precisos e dolorosos, mostrando que quem os dava tinha uma longa prática e conhecia as partes mais sensíveis do corpo, onde a dor podia ser tão insuportável que obrigava a vítima a soltar a língua mesmo contra vontade. O grumete sentiu o cérebro entontecido, os olhos enevoados e um vómito azedo sujou-lhe a camisa, quando um novo soco lhe martelou o estômago com a força de um malho.
– Ele não fala, chefe. E está quase desacordado.
O espião estava cada vez mais impaciente, pois o tempo passava e o gaiato não cedia, ainda acabavam por dar nas vistas e teriam de aclarar muitas coisas difíceis de explicar. Nunca lhe passara pela cabeça que um rapazelho daquela idade fosse um osso tão duro de roer, aguentando uma surra daquelas melhor que homem feito. Se continuasse o castigo, não tardaria a cair desacordado e não lhe serviria de nada, tinha de usar outros meios para o fazer falar:
– Se aguentas a dor, talvez não sofras assistir à morte do teu amigo.
A um gesto seu, o malfeitor sentado à cabeceira de Mateus passou-lhe em volta do pescoço um laço de corda com um nó corredio onde entalara um pedaço do duro pau-brasil. “Um garrote!” pensou o grumete estremecendo, recobrando um pouco os sentidos, “Vão garrotá-lo”. A  um novo sinal de Pereira, o homem começou a torcer o pau, fazendo a corda apertar-se em torno do pescoço do Campanário, cujo rosto se ia tornando vermelho, enquanto, ainda com uns restos de consciência, agitava as mãos amarradas como para se libertar. O outro meliante quase deitado sobre ele imobilizava-lhe as pernas.
– Deixai-o em paz que nada tem a ver com isto! Gonçalo contorceu-se com violência, procurando libertar-se dos braços que o prendiam:
– Onde está o mapa? – repetiu friamente o homem.
Mais duas voltas ao garrote e Mateus abriu a boca sufocado. O ar saía com um som estranho, como se o Campanário se estivesse a afogar. O enorme peito agitou-se, o gigante estrebuchou e quase atirou com o seu algoz ao ar.
– Eh, agarra-lhe bem nas pernas ou este perro raivoso inda se safa!
– Mesmo apagado inda estrebucha que nem touro em garraiada!
– Pela vez derradeira, onde está o mapa?
Para acabar com a tortura do amigo Gonçalo revelou o esconderijo e Martim Pereira, deixando-os nas mãos dos seus homens, foi buscar o precioso documento.

***
 A um rangido mais forte de cordas e madeiras, Mateus abriu os olhos e levou a mão à cabeça ferida, abafando um gemido:
– Perros malditos! Se lhes ponho as mãos em riba… – fechou os punhos formidáveis, como se entre eles apertasse o pescoço dos inimigos. – Apanharam-m’ à traição, quando inda estava meio desacordado da bebedeira. O raio da bebida dos teus amigos é boa que se farta. Com’ é que se chama?
Cauim disse Gonçalo, não podendo deixar de sorrir por Mateus se lembrar da bebida, quando estavam metidos num sarilho terrível.
– Pois quem me dera uma cabacinha de cauim, que tenho a boca seca como pergaminho! – De súbito calou-se e olhou para o Assanhado que a escassa luz mal deixava ver. – A carta de marear… eles apanharam  a carta?
– Sim.
– Mas eu lhes disse nada, apesar de ter os quatro a malharem em mim como ferreiros numa bigorna! – Mateus estava consternado. – Só se falei desacordado…
  – Fui eu que falei, antes que dessem cabo de ti – sossegou-o Gonçalo, começando a contar-lhe o resto da aventura:
Martim Pereira voltara triunfante, trazendo o cobiçado mapa embrulhado num trapo:
– Sim, senhor, tiro-te o meu chapéu! Ali mesmo à vista de todos e ninguém conseguia dar com ele!
– Já tendes o que queríeis, deixai-nos agora em paz!
– P’ra ires despejar tudo aos ouvidos do Guardião ou d’algum dos teus capitães amigalhaços? Isso é qu’era bom!
Tal como calculara, os patifes iam calá-los para sempre, aproveitando a confusão e a azáfama que reinavam nas naus. Pereira pegou no arco e nas setas que Gonçalo deixara cair na luta e disse:
– Ao rapazola podemos fazer de forma a que pareça ter sido morto pelos seus amigos sarapintados. Quanto ao Campanário, levai-o lá para cima como se ainda estivesse bêbado e aproveitai a balbúrdia para o lançar borda fora. Deste trato eu.
          – Não! – gritou o grumete ao ver os dois malandrins soerguerem o amigo e começarem a arrastá-lo, como se o amparassem mas vergados sob o seu peso, tentando levá-lo para o convés.
Com um repelão Gonçalo logrou soltar-se e lançou-se com a fúria do desespero sobre Martim Pereira, apanhando-o de surpresa.
– Que se passa aqui?
Distraídos da vigilância pelo aceso da luta, ninguém dera pela chegada do Mestre da nau, acompanhado por Pêro Vaz de Caminha, Pahanjara e Jabuti. Quatro soldados serviam-lhes de escolta porque o Mestre nunca se sentia seguro tendo por perto estes homens nus e pintados, tão selvagens que nem as naturas escondiam. O escrivão decidira ir a terra com o grumete e os seus amigos nativos para passar com eles a noite e saborear a aventura que o moço tão vivamente lhe descrevera, a fim de a poder relatar com maior fidelidade a Sua Alteza. Perguntara por Gonçalo ao Mestre da nau e este, por deferência para com o secretário do Capitão-mor, decidira ir em pessoa procurá-lo. Grato pela gentileza, Caminha acompanhara-o levando consigo os dois homens da floresta.
Sentindo-se em perigo, apanhado nas malhas da sua própria rede, Martim Pereira contra-atacou, lançando mão dos seus últimos trunfos:
– Traição, Mestre Fernando, tendes aqui dois traidores que caçámos como ratos!
– Traição? – repetiu Caminha com estranheza. – Falais desse grumete?
  Gonçalo quis falar, mas o ajudante de Pereira voltara a dominá-lo e atirara-o ao chão, mantendo-lhe o rosto esborrachado contra as tábuas do soalho. Pahanjara e o irmão, vendo o gigante ferido e o amigo a ser maltratado, lançaram-se contra os algozes com um grito de guerra, empunhando as suas facas de pedra afiada. Apanhado de surpresa, o meliante quase soltou Gonçalo que, para os amigos não serem feridos ou mortos pelos soldados, conseguiu dizer em tupi a palavra sussurrada pelos caçadores, na floresta, para se ficar imóvel e não assustar a presa. Os dois irmãos pararam, hesitantes. Os soldados tinham desembainhado as espadas, mas Pêro Vaz de Caminha ordenou:  
– Quedos! Guardai as vossas armas!
Embora relutantes, os soldados obedeceram. Martim Pereira prosseguiu, já refeito do sobressalto:
– Ando desde Lisboa no rasto do marau que é espião a soldo de Castela e roubou uma cópia da carta de marear com a derrota para a Índia de D. Vasco da Gama.
– Mas isso é alta traição! Não posso crer que esse moço…
– Perdoai, Mestre Caminha – atalhou com secura o espião –, mas tenho aqui as provas e um documento assinado por El-Rei nosso Senhor, conferindo-me poderes para dar voz de prisão a qualquer homem e proceder como achar melhor em caso de crime de lesa-majestade ou traição! Nem mesmo o Capitão-mor pode desacatar uma ordem de Sua Majestade.
O espião entregou o mapa e o documento a Pêro Vaz de Caminha. O regimento era autêntico, pois o escrivão conhecia muito bem a assinatura do seu monarca e o mapa era igual aos dos capitães de cada nau, trazidos no maior segredo. Sentiu o coração pesado de pena:
– Tendes poder para os prender, mas traição é um crime que só deve ser julgado no reino e os prisioneiros têm direito a defender-se.
– Por certo, Mestre Caminha. – apressou-se a concordar Martim Pereira.
Intimamente amaldiçoava o escrivão e as suas ideias humanistas. Seria muito melhor se o Capitão-mor, num julgamento sumário, enforcasse logo os dois rapazes no mastro principal, resolvendo-lhe o caso; por outro lado, se Pedr’ Álvares Cabral lhes permitisse contar a sua história e viesse a acreditar no grumete, o feitiço podia virar-se contra o feiticeiro. Tinha de dispor deles quanto antes, mas de momento era melhor não insistir:
Não sou juiz para os julgar e condenar, mas aconselho-vos a pôr estes traidores em ferros, à bomba da naveta que vai para Portugal, onde El-Rei decidirá do seu destino. Eu também seguirei nela, visto que a minha missão terminou ao apanhar a presa.
Gonçalo percebeu que nunca chegariam vivos a Lisboa para se defenderem, pois o maldito espião acharia maneira de os calar para sempre. O Mestre falou, hesitante:
– O Capitão-mor está com todos os oficiais em terra e eu…
Martim Pereira não deixou escapar a ocasião, dizendo com arrogante autoridade:
– Eu sou oficial da guarda d’El-Rei e, pelos poderes conferidos pelo meu regimento, posso decidir do destino dos prisioneiros. Vamos levá-los daqui para a naveta de Gaspar de Lemos e mais tarde prestarei contas ao Capitão-mor.
Os três homens de Pereira e dois soldados só a duras penas lograram transportar Mateus para a tolda. Gonçalo, ladeado pelos outros dois soldados, ao passar diante do escrivão, disse:
– Mestre Caminha, juro-vos que estou inocente!
– Isso dizem todos os traidores! Se voltar a falar, amordaçai-o – atalhou, escarninho, o espião.
O escrivão achava a história muito mal contada, mas não sabia o que fazer. Por ora deixaria seguir os acontecimentos, porém, nesse mesmo dia e na primeira oportunidade que se lhe deparasse, não deixaria de expor ao Capitão-mor as suas dúvidas acerca deste caso tão estranho.
Só havia um escaler encostado à nau e poucos marinheiros assistiram à sua prisão e embarque, pois toda a equipagem e a gente de armas estavam com o Capitão-mor, folgando em terra. Pahanjara e Jabuti tremiam de raiva e impaciência, mas o olhar e alguns gestos rápidos de Uraçá impediam-nos de agir para libertar os amigos.
Não sabiam o que sucedera, no entanto conheciam o estrangeiro de nobre coração que conquistara o amor de sua irmã e também haviam visto que aquela luta não fora leal e, por isso, não podiam consentir no seu castigo. Tentaram entrar na naveta para conhecer o destino dos dois prisioneiros, mas os soldados não lho consentiram, tendo o batel tomado em seguida o rumo da praia onde os desembarcaram. Os dois irmãos correram a alertar a tribo. 

***
Os galos cantaram na capoeira anunciando a manhã. Não tantos como na nau capitânia, que aí mais pareciam uma fanfarra a soar o toque da alvorada, sendo o sinal para os grumetes despertarem e tratarem do mata-bicho, dando começo às tarefas diárias.
Gonçalo estava desfeito pela noite sem dormir e pela sua impotência perante um destino que parecera sorrir-lhe na desgraça e acabara por troçar dele impiedosamente, atirando-o de novo para as garras dos seus inimigos no momento em que se julgara livre e ser feliz lhe parecera de novo possível. Perdia tudo desta vez, inclusive a vida. Essa vida, ainda tão curta, dera mais voltas do que um pião e a recordação da infância ditosa, sob a protecção e carinho dos pais, parecia-lhe mais um sonho ou uma fantasia do que uma lembrança de algo real.
O movimento da vida a bordo chegava abafado até ele, mas tudo parecia retomar o ritmo costumeiro e os marinheiros, se sabiam alguma coisa do que se passara na tarde anterior, preferiam não falar disso, pois a traição era um crime sem perdão. Ao ouvir os ruídos e a azáfama da nau, o Campanário ergueu-se num salto, como sempre fizera, mas gemeu e teve de se apoiar ao Assanhado para não cair. Com mais cuidado, moveu as pernas e os braços, retesou os músculos e disse satisfeito:
– Os meliantes nem força tiveram pra me quebrar os ossos! Se não estivesse zonzo, nem a primeira trancada me tinham dado! Assim, deixaram-me de tal maneira que nem dei por nos trazerem pr’ aqui. Devemos estar prestes a partir para Lisboa…
– Martim Pereira não nos vai deixar sair daqui com vida, sabes isso, não sabes?
– Sim, nã pode correr o risco de nos deixar contar a verdade.
Ficaram em silêncio. Silêncio pesado que Gonçalo não conseguiu sofrer por muito tempo:
– Perdoa, meu amigo, por te ter arrastado comigo para a morte.
Mateus disse, com um suspiro:
– Só por ter conhecido Uapê e Arati, valeu a pena.
Gonçalo pensou em Igapê e chorou.


Cap. VIII
A Carta

          O alçapão abriu-se e dois grumetes desceram as escadas, seguidos por mais de uma dezena de nativos carregados com molhos de pau-brasil. Com gestos e graçolas, os portugueses indicavam aos homens pardos onde empilhar e como amarrar a madeira para que não rolasse pelo soalho, com o balanço da nau durante a viagem. Estavam contentes por irem para casa mais cedo e falavam disso.
          – Partimos amanhã de manhãzinha pra casa – disse o mais novo, bem alto, para que os prisioneiros ouvissem.
        Estavam proibidos de falar com eles e quem desobedecesse ficava sujeito a pesado castigo, mas o rapaz tinha pena dos grumetes que conhecia de vista das suas idas em terra e gostara das aventuras do Assanhado. Custava-lhe a crer que ele fosse um espião e um traidor. Por isso, enquanto falava para o companheiro, procurava dar-lhes algumas notícias do que se passava lá fora, porque ali, às escuras de manhã à noite, nem deviam saber a quantas andavam.
        – Também folgo de partir que p’ra aventura já me chega esta. Nunca mais largo de Lisboa. Mais vale ser pobre em terra…
       Dois nativos aproximaram-se deles sorrateiramente e desferiram-lhes um golpe na cabeça com os duros paus cor de brasa e os homens tombaram por terra sem tempo de soltar um ai. Gonçalo, espantado, reconheceu nos assaltantes Jabuti e Pahanjara que vinham libertá-los. Itâna e Taari eram outros rostos familiares no grupo de guerreiros. Os dois irmãos recomendavam-lhes por gestos que se apressassem.
          – As correntes! – murmurou Gonçalo, com desespero. – Esses dois não têm as chaves. Só o guardião e nunca as larga.
         – Será que são precisas? – perguntou o Campanário. – Na minha aldeia pagavam para me verem fazer isto.
Enchendo o peito de ar, retesou os músculos e afastou as mãos cujos pulsos estavam enfiados em dois aros de ferro ligados entre si por uma curta mas grossa cadeia. A corrente esticada parecia impossível de quebrar e os músculos do gigante prestes a explodir. Gonçalo e os guerreiros de Jacaúna olhavam fascinados o terrível esforço, mal se atrevendo a respirar. O Campanário encheu uma vez mais o peito de ar, as bochechas incharam-lhe no rosto vermelho e suado e, num sacão violento, esticou a cadeia. Com um estalido a corrente rebentou. Os guerreiros saudaram o feito erguendo os seus punhais de pedra. Já ninguém duvidava de que faria o mesmo às correntes dos pés. Soltar o Assanhado foi-lhe ainda mais fácil, pois estando livre logo arranjou um prego e, num abrir e fechar de olhos, soltou os fechos das grilhetas que prendiam o amigo.
– Para um bom ferreiro nenhum fecho tem segredos!
Até ali tudo fora demasiado fácil, pensou Gonçalo, mas como poderiam sair da naveta com o Campanário sem darem nas vistas?
– Como vais tu sair daqui? – perguntou.
– Havia cá muito pouca gente quando nos trouxeram e ainda menos nos viram depois disso. Posso passar por um desses – apontou para os marinheiros ainda inconscientes, – desde que cubra a cara e me curve um pouco. E tu, despe-te… para ficares vestido como eles.
Bom plano… se resultasse, mas também já nada tinham a perder. Gonçalo despiu-se rapidamente, mostrando as novas pinturas que dias antes Igapê havia criado na tela viva do seu corpo e juntou-se aos guerreiros Tupiniquins. Pahanjara e Jabuti mostraram no rosto o orgulho pela arte da irmã. Mateus apanhou o largo sombreiro arrancado ao marinheiro pela paulada de Jabuti e enfiou-o na sua própria cabeça. Felizmente servia-lhe. Viu uma saca vazia caída no chão e nela meteu algumas ferramentas que lhe poderiam ser úteis em terra. Lançou a saca ao ombro, disfarçando as marcas do rosto pisado e dobrando o corpo para se fazer mais pequeno, pôs-se à frente dos guerreiros e fez-lhes sinal para que o seguissem.
Subiram as escadas, saindo para o convés e dirigiram-se para os batéis que esperavam os carregadores a fim de os levar a terra. Ninguém lhes prestou atenção ou fez perguntas. Era uma armada de treze navios cheios de gente que raramente convivia, conheciam-se apenas os companheiros de bordo e mesmo esses, por vezes, muito mal. 
Ao desembarcarem, dirigiram-se sem demora para a orla da floresta onde viram Igapê, Uapê e Arati a esperá-los. As jovens correram ao encontro dos portugueses e o Campanário recebeu nos braços, cheio de alegria, as duas bonecas cor de cobre que eram as primas de Igapê. Por uns momentos Gonçalo ficou imóvel olhando Igapê, a flor-de-água que criara raízes no seu coração. Voltar a vê-la, depois de a ter julgado perdida para sempre, era como um sonho e sentiu medo de despertar, mas a filha do Pajé, acercando-se dele, pousou os lábios com infinita doçura na feia cicatriz da sua fronte e Uraçá pôde perder-se de novo na serena noite dos seus olhos.
Itâna murmurou qualquer coisa a Pahanjara e Jabuti (que olhavam sorrindo a ventura da irmã), talvez a lembrar o perigo que corriam e a moça soltou-se dos braços de Uraçá e entraram por fim na floresta que os escondeu sob o seu manto protector.
***
Na taba de um outro clã de parentes de Jacaúna, bem no interior da floresta, Uraçá escrevia febrilmente uma carta para Pêro Vaz de Caminha. Tinha de lhe contar a verdade e preveni-lo contra Martim Pereira pois, partindo na naveta e estando na posse do mapa, nunca mais lograriam deitar-lhe a mão e os Reis de Castela ficariam, com muito pouco trabalho e pequena despesa, na posse de um tesouro precioso – uma derrota de mar para as especiarias.
Dava graças a Deus, aos pais e a El-Rei D. João II por ter aprendido a escrever, posto que nesse seu engenho e talento residia agora toda a esperança de salvação e de um dia poder regressar a Portugal. Usava as folhas de papel dadas pelo escrivão a Pahanjara e Jabuti, em paga da paciência com que eles se haviam deixado examinar e dos enfeites de contas e penas que lhe tinham oferecido, e Igapê fizera várias tintas até conseguir uma que não esborratava o papel. Os amigos caçadores trouxeram-lhe plumas de muitas aves e o grumete aguçou-as em bico, em sucessivas e desesperantes tentativas, até conseguir desenhar palavras legíveis.
          Contava ao escrivão a sua história, o orgulho de ser filho de quem era, a educação na corte de D. João II, a morte do pai, a sua vida com o padrasto e como descobrira a traição, roubara o mapa e fugira na Armada para escapar às represálias de Afonso Freire, mas o braço vingativo do traidor chegava mais longe do que ele pudera pensar. Terminou dizendo que Mestre Caminha era a única pessoa em quem podiam confiar e, por isso, trataria de lhe fazer chegar a carta escrita para reabilitar o seu nome, pois devia isso à memória de seu pai que sempre lhe ensinara a fidelidade devida ao Rei e ao Reino de Portugal. Endereçou a carta a Pêro Vaz de Caminha e Coati, o moço mais veloz na corrida, partiu como uma flecha ao encontro dos portugueses.
            Pêro Vaz de Caminha tinha nesta viagem o cargo de registar, para El-Rei D. Manuel, tudo o que observasse e ouvisse de importante e o grumete vira sempre nele, pelo modo como o interrogara sobre os seus amigos e os costumes da terra, o desejo de saber a verdade, de conhecer todos os factos, esmiuçando-os até já se não poder saber mais. Ao ler a carta, não deixaria por certo de verificar a sua história, de inquirir até onde pudesse para apurar a verdade. E ele? Chegaria a saber alguma vez o fim desta aventura? Só o tempo o diria...
          Dirigiu-se com Igapê para o rio, a ver do Campanário que Uapê e Arati não deixavam sozinho nem um instante, tentando levá-lo a tomar banho, a fim de o prepararem e coatiarem como a um verdadeiro caçador da tribo. As duas moças troçavam do seu medo da água e não compreendiam por que gostava aquele belo gigante de ter pêlos no corpo como um bicho da floresta, de se cobrir com as feias peles dos estrangeiros e de cheirar mal como um javali.
          Os seis guerreiros que, a pedido delas, tinham tentado fazer-lhe o mesmo que haviam feito a Uraçá – agarrando-o em peso e lançando-o à água –, foram enviados pelo ar para dentro do rio, num abrir e fechar de olhos, perante as gargalhadas e os chistes das moças que folgavam  com eles, deixando Uapê e Arati a impar de orgulho e de adoração pelo valor do seu pretendente. Fora assim que Mateus Ferreiro, o Campanário, ganhara o seu novo nome de guerra, Manati, do enorme e pachorrento peixe-boi que vive tranquilo pastando algas no fundo dos rios, por ser tão forte que nenhum outro animal se atreve a atacá-lo.
           Uraçá e Igapê viram, sobre os penhascos escarpados do rio, as duas primas entregues a um estranho ritual tendo Mateus por vítima. O gigante parecia muito assustado e recuava perigosamente para a beira do rochedo, encurralado por Uapê e Arati que, avançando implacáveis, lhe apontavam uma grossa manga a contorcer-se como se tivesse vida. Porém, logo reconheceram que não se tratava de qualquer manga ou cana, mas sim de uma jibóia enorme, uma espécie de animal de estimação, tolerada na oca por ser inofensiva e boa para caçar ratos. A primeira vez que a vira também Gonçalo julgara morrer de medo.
          Riram-se, como outros muitos que assistiam à farsa, divertidos por verem como as duas moças tinham conseguido arranjar maneira de levar Manati a tomar banho, sem usar a força. E o resultado não se fez esperar, pois a um movimento mais arqueado da enorme cobra, Mateus deu um salto para trás e despenhou-se no rio, gritando e esbracejando como um possesso. De imediato as duas moças soltaram a jibóia e lançaram-se do alto do penhasco, num voo simultâneo e perfeito, para mergulharem nas águas e pescarem o sufocado Manati.   Todos os que por ali folgavam se juntaram à brincadeira, incluindo Uraçá e Igapê, e as roupas do gigante indefeso foram rasgadas e arrancadas do seu corpo, desaparecendo sem deixar rasto. Eles sabiam que, depois de Uapê e Arati exercerem as suas artes, um novo guerreiro surgiria na oca e o velho Pajé sofreria resignado a presença de mais um emboaba no seu clã.
***
O Capitão-mor decidira que na sexta-feira, dia primeiro de Maio, a Armada inteira desembarcaria para a cerimónia da Cruz e da despedida. Os batéis de todas as naus fizeram várias viagens até acabarem de despejar as suas gentes na praia e, por fim, Pedro Álvares Cabral embarcou no seu batel com os oficiais e a bandeira que lhe dera El-Rei D. Manuel.
– Será melhor chantar[71] a Cruz ali, acima do rio e contra o sul, para melhor ser vista de quem venha do mar – ordenou  aos seus homens, mal chegou a terra.
– E com a divisa e as armas d’El-Rei de Portugal, será um bom aviso para qualquer nação que aqui queira meter o dente – acrescentou Bartolomeu Dias.
Enquanto alguns grumetes faziam a cova, o Capitão-mor com todas as equipagens e os padres foram buscar a Cruz onde os carpinteiros a tinham deixado na terça-feira, abaixo do rio. Ali, os homens a tomaram sobre os ombros e logo se formou uma procissão, com os padres adiante a cantar cânticos de louvor a Jesus Cristo e à Virgem Maria. Muitos nativos se acercaram para ver o que faziam os estrangeiros e logo alguns se juntaram ao cortejo e, metendo-se por baixo da cruz, ajudaram a carregá-la até ao sítio onde seria cravada na terra. Armado um altar junto dela, Frei Henrique oficiou uma missa cantada, acolitada por todos os padres e observada por cerca de cinquenta indígenas que se ajoelhavam e erguiam as mãos ao céu, tal como viam fazer aos portugueses.
Jacaúna descera à praia e seguira com muita atenção e cheio de maus pressentimentos a magia dos pajés estrangeiros e agora procurava avisar os seus homens dos perigos que esta gente representava para o seu mundo, rogando-lhes que se afastassem para bem longe, mas eles pareciam enfeitiçados. Pêro Vaz de Caminha viu o velho xamã andar entre os seus homens, falando com  grande agitação e disse para o Capitão-mor:
– Vede como aponta para o céu e para nós. Não tenho dúvidas de que estes nativos estão desejosos de se fazerem cristãos.
– Também assim me parece – respondeu Pedro Álvares Cabral. – Oremos por isso e agradeçamos a Deus por se ter servido de nós para tão nobre missão.
Frei Henrique subiu a uma cadeira, posta junto ao altar, e pregou o seu Evangelho aos homens sentados que o escutaram com emoção, enquanto ele lhes recordava a missão santa e virtuosa que os esperava na Índia – espalhar a fé cristã e converter os infiéis e os gentios. Quando o padre acabou de pregar, Nicolau Coelho aproximou-se dele com um saquinho e disse:
– Tenho aqui cinquenta pequenos crucifixos de estanho que me sobraram da primeira viagem à Índia. Podíamos dá-los a esta boa gente que assistiu à missa com a devoção de veros cristãos.
– Parece-me muito boa ideia, pois assim não se esquecerão tão depressa dos nossos ritos e cerimónias. – E o padre acrescentou: – Eu mesmo lhos darei para que os tomem como um ritual sagrado.
E o padre Henrique sentou-se junto à Cruz e foi lançando os crucifixos atados por um fio ao pescoço dos homens pardos e nus, um a um, fazendo-os primeiro beijar a cruz e erguer as mãos ao céu.
Em seguida, o Capitão-mor deu ordem de recolher às naus para comer, pois já passava do meio-dia e, aproximando-se de Jacaúna, convidou-o por acenos a ir com ele até à capitânia. O velho Pajé aceitou, na esperança de esconjurar os maus espíritos. No momento em que Pêro Vaz de Caminha ia entrar para o batel, Coati aproximou-se a correr e sem uma palavra entregou ao espantado escrivão a carta de Uraçá.
***
Caminha acabou de ler a carta, com os olhos húmidos de emoção. A fuga dos grumetes dera brado e os dois degredados que iam ser deixados em terra tinham recebido ordem para abater os traidores mal os avistassem. O mais acirrado perseguidor fora Martim Pereira, chegando a ir à aldeia do Pajé Jacaúna, mas o Capitão-mor tinha-o proibido de exercer qualquer violência sobre os nativos e ele também não vira lá qualquer traço da presença dos fugitivos, embora tivesse passado revista a todas as cabanas, para grande pasmo dos seus habitantes.
Tal conduta aumentara as desconfianças do escrivão que acabara por falar delas ao Capitão-mor e este concordara em manter o arrogante oficial, apesar dos seus plenos poderes, debaixo de olho. Agora, Caminha tinha a certeza da inocência do infeliz grumete, pois o seu instinto dizia-lhe que aquela carta nunca poderia ter sido escrita por um traidor. Por isso, ao chegarem à nau, pediu para ser recebido em privado por Pedro Álvares Cabral, a fim de lhe dar a carta a ler.
Uma história espantosa, Pêro Vaz – exclamara o Capitão-mor, ao acabar a leitura , e que desperdício a fuga de tais moços para uma selva desconhecida!
– Também os achais inocentes?
       – Sim, não me parece que o moço fosse capaz de inventar uma história destas, com tantos dados  tão fáceis de provar.
         – Que pensais fazer?
        – Falarei à puridade[72] com Gaspar de Lemos para ter vigilância apertada sobre Martim Pereira, até chegarem a Lisboa, a fim de que nenhuma carta ou livro de marear lhe caia nas mãos. E, logo que surjam no porto, levará ao Meirinho-mor um relato meu destes graves sucessos e das nossas suspeições.
          – E esta carta do grumete, denunciando Afonso Freire, talvez o ajude na sua inquirição – sugeriu o secretário.
        – Certamente, pois tem havido muitos rumores sobre uma rede de espiões a soldo de Castela e de muitas fugas de informações, por traidores portugueses, acerca das novas terras descobertas e dos tratos com os povos desses lugares.
        – Antes mesmo da nossa partida, já El-Rei ordenara que se fizesse devassa[73] e se descobrissem os culpados mas, que eu saiba, ainda não tinham deslindado a meada ao tempo da nossa largada.
          – Talvez isto venha a ser a ponta do novelo… e o grumete o herói da história. O Capitão entregará também a Sua Majestade um registo meu, com o selo especial que me deu para documentos só para os seus olhos. Na vossa missiva, Pêro Vaz, calai este assunto para que o roubo do mapa se mantenha em segredo e dele não chegue sequer um rumor aos ouvidos dos castelhanos.
– Assim farei, meu senhor. Quanto ao moço…
         – Escrevei-lhe algumas palavras e deixaremos a carta com os degredados a quem darei ordens, à puridade, para o deixarem em paz. Quem sabe se, no regresso, não o veremos na praia a dar-nos as boas-vindas?
– Oxalá, meu senhor, oxalá… – e retirou-se para a sua câmara a fim de terminar a carta a sua Alteza, el-Rei D. Manuel.
Sentado à sua mesa retomou as folhas e releu o que tinha escrito, depois alisou num gesto maquinal a última, ainda incompleta, e molhando a pena no tinteiro começou a escrever:
        “Creio, Senhor, que com estes dois degredados ficam mais dois grumetes, que esta noite se saíram desta nau no esquife, fugidos para terra. Não vieram mais. E cremos que ficarão aqui, porque de manhã, prazendo a Deus, fazemos daqui partida.”
        Não diria mais nada sobre os grumetes, seguindo a recomendação do Capitão-mor, esperando em Deus que se fizesse justiça e os moços ainda estivessem vivos quando tudo ficasse esclarecido e os verdadeiros criminosos justiçados. Com um suspiro, deu início à conclusão da sua carta:
          “... até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem cousa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é de mui bons ares, assim frios e temperados, como os de Entre Douro e Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá.”
         Neste ponto, Caminha suspendeu a pena e reflectiu que a ausência de ouro e prata  seria, sem dúvida, uma triste notícia para o Rei Felicíssimo. Então, com uma ruga de preocupação a formar-se na testa, acrescentou depois de mais algumas considerações sobre a terra:
            “Porém, o melhor fruto que dela se pode tirar me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar.
E que aí não houvesse mais que ter aqui esta pousada para esta navegação de Calecut, isso bastaria. Quanto mais disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber,  acrescentamento da nossa santa fé.”
           Parou de escrever e pensou como seria magnífica a obra de transformar aqueles gentios  tão inocentes em cristãos! Notara que na graciosa fala dos homens da selva não havia os sons de três letras do A, B, C, que eram o F, o L e o R e quando disso falara ao Padre Henrique este lhe contestara com muita verdade: “Se não têm F, é porque não têm Fé em nenhuma cousa que adorem; se não têm L, é porque não têm Lei para se governarem e cada um faz a lei a seu modo; e se não têm R na sua pronunciação, é porque não têm Rei que os governe e a quem obedeçam”. Por isso, os portugueses e el-Rei D. Manuel poderiam preencher estas faltas e dar a este bom povo um mundo cristão, com rei e com polícia. Assim, Sua Alteza o desejasse, mesmo se naquela terra não houvesse ouro, prata e pedrarias! Suspirou, pondo de lado a missiva para el-Rei e tomando uma folha nova começou a escrever a Gonçalo. A pouco e pouco a ruga desfez-se e um sorriso divertido e terno assomou aos lábios do escrivão.
***
            Na Gruta do Recife Vermelho, o Pajé Jacaúna queimava as ervas sagradas, chamando a si o dom da Visão, enquanto murmurava uma prece a Tupã, Deus do Trovão e das Tempestades, a fim de lhe comunicar o seu pedido. Purificara o corpo nos fumos da erva-santa e bebera o yajé e o caapi[74], onde misturara um pouco de pó de ossos de todos os pajés que antes dele haviam praticado os ritos de adoração, de súplica ou de maldição, para que o seu espírito pairasse forte entre o céu e a terra e assim pudesse receber ajuda.
        O velho Xamã estivera no ventre do Grande Pássaro onde viajava o chefe dos Emboabas e vira o poder mortífero das gigantescas zarabatanas negras que, presas aos flancos da ave, vomitavam fogo, pedras e matérias nunca antes vistas, arrasando rochas, árvores, animais e... homens, com a força e a fúria do raio de Tupã. O feiticeiro soubera então que não podia aceitar sem luta a destruição do seu povo, nem virar o rosto e proferir apenas preces de suplicante para manter os estrangeiros longe da sua terra; eles teriam de ser sacrificados para a grande raça Tupi-Guarani poder sobreviver e Jacaúna seria o causador da sua aniquilação.
          Assim, o Pajé invocava todos os seus poderes e os dos espíritos do lugar sagrado, para o feitiço enredar na sua teia, um a um, os funestos pássaros que desdobravam as brancas asas ao vento, iniciando o seu voo à superfície das ondas. Cantava para cada um uma canção de morte, chamando a si as forças da natureza, dos céus e dos mares. A cada encantamento, o velho feiticeiro talhava no seu próprio corpo com a faca do sacrifício o padrão do desastre e da ruína, selando com o seu sangue e o fogo sagrado o destino de muitas almas.
        Porém, todos os dedos das mãos do Pajé não bastavam para contar os pássaros de asas brancas e o sangue já não abundava no velho corpo ressequido. Ao terminar a canção do último dedo da sua mão direita, que a custo conseguiu separar do corpo, Jacaúna sentiu-se enfraquecer e a angústia de não conseguir terminar a sua missão interrompeu-lhe por instantes o canto. Pensou nos Emboabas que recebera na sua oca, dois irmãos guerreiros e viajantes e lembrou o olhar profundo do mais velho de estranho nome – Bartolomeu – porque ele fora escolhido por Tupã e sabia reconhecer a presença oculta dos espíritos. Mas também este tinha de morrer.
         Ao encetar o encantamento do primeiro dedo da sua mão esquerda, abrindo um sulco até ao osso, o velho xamã desfaleceu e tombou sobre a esteira, continuando a sua reza até as forças o abandonarem e a vida escorrer do seu corpo em seis lentos fios vermelhos que secaram no rescaldo da fogueira. A teia do seu sortilégio enliçara apenas cinco dos doze pássaros gigantes e só estes seriam destruídos; o sexto, cujo encantamento não lograra terminar, andaria perdido pelo mundo até expiar as suas culpas[75].
***
Bartolomeu Dias parou a meio de uma ordem ao seu piloto nas manobras da partida. Um frio terrível arrepiara-lhe a pele e o navegador quis afastar o negro pressentimento que o assaltou sem qualquer aviso, mas a imagem do Pajé tornou-se nítida no seu espírito como uma visão de morte. No dia anterior, ao receber Jacaúna na capitânia e para o espantar, Pedro Álvares Cabral fizera disparar as bombardas contra a praia. No olhar medonho que o feiticeiro lhes lançara, Bartolomeu Dias pudera ler o ódio e a condenação, melhor do que nas palavras que proferira e ninguém entendera.
O dia era de sol e alegria, porém o capitão sentiu o Medo, a Dor e a Morte à sua volta e, de súbito, compreendeu que o Pajé amaldiçoara a Armada e que a viajem não teria um final feliz. Olhou a praia e aquele povo generoso a acenar-lhes um adeus e, semicerrando os olhos, recolheu-se numa breve oração à Virgem, pedindo-lhe protecção e socorro. Em seguida, retomou a sua posição junto ao piloto, vigiando as manobras.
Toda a tribo dos Tupiniquins acorrera à praia para assistir à partida dos Emboabas e fazer as suas despedidas. Os dois degredados tinham avançado mar dentro, com os sentidos postos nos companheiros que partiam e os deixavam naquela terra estranha entre selvagens nus, usando ainda machados de pedra e lanças feitas de paus aguçados. Com a água pela cintura, sentiam as lágrimas correr-lhes pelo rosto e nem cuidavam em limpá-las. Condoídos, os homens da floresta acercaram-se deles e levaram-nos para a praia, falando-lhes com palavras cujo significado não entendiam, mas consolando-os com a voz e o gesto de amigos.
Uraçá chegou à orla do mar, acompanhado de Igapê, Pahanjara e Manati, que parecia só ter olhos para Uapê e Arati penduradas nos seus braços. O enorme ferreiro estava irreconhecível, pintado da cabeça aos pés como um guerreiro de fábula das iluminuras antigas, pois as duas primas igualavam Igapê na arte de pintar corpos e tecer adornos de penas. Gonçalo viu a Armada a afastar-se no seu orgulhoso alinhamento, de proas viradas a Oriente e velas brancas enfunadas, exibindo as vermelhas cruzes de Cristo como um símbolo da sua missão. Sentiu um nó na garganta, mas notou o olhar ansioso de Igapê a procurar-lhe no rosto as emoções da perda do seu mundo e sorriu-lhe com ternura.
Os degredados acercaram-se dele, ainda com lágrimas nos olhos (o que o deixou mais descansado quanto às intenções dos compatriotas a respeito dos fugitivos) e Afonso Ribeiro entregou-lhe uma carta.
          – É de mestre Caminha.
O grumete fugitivo agradeceu, contente por ser este o degredado que Pedr’Álvares Cabral deixava em Terras da Vera Cruz ou, como os matalotes preferiam chamar-lhe, Terras do Pau Brasil ou só mesmo Brasil. Olhou a carta e suspirou… afinal, talvez um dia pudesse volver a Lisboa a visitar a mãe. Ergueu a mão num gesto de adeus à Armada. Duas araras riscaram o céu de azul e vermelho, soltando o seu grito de liberdade. Também Uraçá, entre os homens da floresta e o amor de Igapê, lograra soltar finalmente o coração de Gonçalo do punho cerrado da sua revolta, permitindo-lhe pulsar de novo ao suave ritmo do amor, da amizade e da esperança.

 FIM


BIBLIOGRAFIA

Para a Viagem e Descobrimento do Brasil:

Texto-base:

Carta de Pêro Vaz de Caminha a El-Rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil in O Reconhecimento do Brasil – Biblioteca da Expansão Portuguesa, Publicações. Alfa, Lisboa 1989.

Outros:

Autor Anónimo – Navegação do Capitão Pedro Álvares Cabral escrita por um piloto português in O Reconhecimento do Brasil – Biblioteca da Expansão Portuguesa, Publicações. Alfa, Lisboa 1989.
Azurara, Gomes Eanes de – Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné – Introdução, actualização de texto e notas de Reis Brasil. – Publicações Europa-América, Lisboa 1989.
Barros, João de – Décadas da Ásia I – Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa 1988.
Brandão (de Buarcos), João – Grandeza e Abastança de Lisboa em 1552 – Col. Cidade de Lisboa, Livros Horizonte, 1990.
Chaves, Álvaro Lopes de – Livro de Apontamentos (1438-1489) – Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Lisboa 1983.
Comissão   Nacional  para  as  Comemorações dos Descobrimentos Portugueses:
            1 . Brasil

Comissão   Nacional  para  as  Comemorações dos Descobrimentos Portugueses            Lisboa xpansão Marítima  sec. XV e XVI  Ministério da Educação.

Correia, Gaspar – Lendas da Índia.  Col. Monumentos Inéditos, Ed. Academia Real das Ciências de Lisboa –  3 vol. – 1860.
Dicionário da História de Portugal – Direcção de Joel Serrão – Livraria Figueirinhas, Porto
Domingues, Francisco Contente; Guerreiro, Inácio – Viver a bordo – Revista Oceanos, nº 3 – Comissão   Nacional  para  as  Comemorações dos Descobrimentos Portugueses.
Fonseca, Luís Adão – Pedro Álvares Cabral - Uma Viagem Edições Inapa, Lisboa 1999.
Góis, Damião de – Descrição da Cidade de Lisboa  Col. Cidade de Lisboa, Livros Horizonte, 1990.
Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses – A Caravela: condições de Navegação no tempo dos Descobrimentos.
Guinote, Paulo et al. – Naufrágios e outras perdas da “Carreira da Índia” Séculos XVI e XVII – Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa 1998.
Livro de Lisuarte de Abreu – Jornal de Bordo, Introd. de Luís de Albuquerque – Comissão Nacional para  as  Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. 1991.
Oliveira, Cristovão Rodrigues de – Lisboa em 1551 – Sumário – Ed. Livros Horizonte, Lisboa 1997.
Oliveira, Fernando – Vestuário Português no Tempo da Expansão (Séculos XV e XVI) – Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. Lisboa 1993.
Velho, Álvaro –  Relação da Viagem de Vasco da Gama  Comissão   Nacional  para  as  Comemorações dos Descobrimentos Portugueses.


Para o vocabulário e costumes dos índios:

Alencar, José de  Iracema   Livros de Bolso, Europa-América, Lisboa 1973.
Alencar, José de – Ubirajara – Clássicos Brasileiros, Edições de Ouro, Rio de Janeiro –  Brasil 1966.
Gândavo, Pêro de Magalhães de – História da Província de Santa Cruz in O Reconhecimento do Brasil – Biblioteca da Expansão Portuguesa, Publicações. Alfa, Lisboa 1989.
Soares, Padre Francisco – Coisas notáveis do Brasil in O Reconhecimento do Brasil – Biblioteca da Expansão Portuguesa, Publicações. Alfa, Lisboa 1989.
Sousa, Gabriel Soares de – Notícia do Brasil – Biblioteca da Expansão Portuguesa, Publicações. Alfa, Lisboa 1989.





[1] Mariola era o nome dado àqueles que não tinham trabalho certo, que prestavam alguns serviços em troca de umas moedas.
[2] Trabalho, profissão.
[3] Ver “O Cometa”, da mesma autora.
[4] Uma onça corresponde a 28,35 gramas.
[5] Medida antiga que corresponde a 1,4 litros.
[6] Moeda antiga de ouro ou prata no valor de 400 réis.
[7] Marinheiros.
[8] 1 quintal = 4 arrobas = 60 quilogramas.
[9] Calças bragas: largas e curtas; imperiais: de roca ou balão, muito largas, apertando no tornozelo, confeccionadas com grandes quantidades de tecido rico. Pelote: casaco fechado, pelos joelhos. Tabardo: manto que descia até meio da perna, fechado e fendido (com golpes) e com grandes cavas. Opa: casaco muito amplo e comprido, com mangas largas e gola alta. Saio: vestido amplo, estreito na cintura e peito, com diferentes tipos de mangas.
[10] Manto ou capa ampla fechada que se vestia sobre a outra roupa.
[11] Botas até ao joelho, com atacadores.
[12] Os espelhos eram raros no século XVI, importados de Itália e tão caros que só os nobres e ricos os podiam comprar.
[13] Desajeitada.
[14] Folha de pergaminho dobrada em duas partes.
[15] Os que tratavam das velas e cordoaria nos navios.
[16] Antiga peça de artilharia (canhão) que arremessava grandes balas de pedra.
[17] Poder de condenar à morte por enforcamento (baraço/corda) ou decapitação (cutelo/espada).
[18] Cabelos brancos.
[19] O 2º comandante, que substituiria o Capitão-mor no comando da Armada, se algo lhe acontecesse.
[20] Tambor de metal (vindo do Oriente), em forma de meio globo, coberto de uma pele esticada onde se toca.
[21] Antigo instrumento musical, espécie de marimbas metálicas.
[22] Depressa.
[23] Rota, mapa de um percurso de navegação.
[24] Perturbar, incomodar.
[25] Prisão.
[26] Batéis, escaleres.
[27] O barbeiro tinha funções de médico e cirurgião. Só ia médico nas armadas mais importantes ou na nau do Governador ou do Vice-Rei.
[28] Cordas, cordoalha do navio.
[29] Durante o período da Páscoa, os oito dias que terminam no Domingo de Pascoela.
[30] Entre as 15 horas e o pôr do sol.
[31] Prémio.
[32] Ancorar.
[33] Pequena peça de artilharia.
[34] Os órgãos sexuais.
[35] Cor entre o branco e o negro. Os portugueses conheciam a cor negra de várias raças da Guiné e do Oriente, mas nunca tinham visto índios brasileiros, com uma pele assim avermelhada, por isso os rotularam de “pardos”.
[36] Intérprete.
[37] Pão em forma de bolacha que se comia a bordo dos navios, cozida em forno duas vezes para as viagens curtas e quatro vezes para as grandes viagens. Era assim cozido para perder a humidade e poder guardar-se, durante muito tempo, sem se estragar.
[38] Antiga unidade de comprimento com que se media a profundidade do mar, correspondente a dez palmos, ou seja, a 2,20 metros.
[39] Argolas, aros, pulseiras.
[40] Ave de rapina do Brasil, espécie de açor.
[41] Guizos.
[42] Envenenadas com suco de ervas venenosas.
[43] “Tu vieste?” – Saudação tradicional de hospitalidade dos índios tupi.
[44] “Sim, vim.” – Resposta ritual.
[45] “Bem dito.” e “ Qual é o teu nome?” – Conclusão da saudação ritual a um hóspede.
[46] História, narrativa de guerra.
[47] Nome que os índios davam aos portugueses no tempo da colonização.
[48] Ossos das fossas nasais.
[49] Recinto da aldeia, espécie de praça, formado pelas cabanas dispostas em círculo.
[50] O ananás era um fruto desconhecido dos europeus, até à descoberta do Brasil.
[51] Verbo índio que significa pintar.
[52] Coatiado, pintado.
[53] Pau cor de brasa.
[54] Menina, criança.
[55] Administrador ou tesoureiro da Casa Real.
[56] Saltos mortais.
[57] Palavrões, obscenidades.
[58] Rebocado por barco, preso à corda.
[59] Pássaros de muitas cores e belo canto.
[60] Meninos maus.
[61] Arbítrio, poder de decisão.
[62] Tamanduá é um parente do urso-formigueiro gigante de que trata o texto, mas nos Séculos. XVI e XVII era este o nome que lhe davam.
[63] Pêlos, cabelo, crinas.
[64] Sacerdote e feiticeiro que pratica exorcismos.
[65] Mistura de substâncias aromáticas, embrulhadas em folhas de bétele, que na Índia e em outras regiões tropicais, as pessoas têm o hábito de mascar (mastigar e cuspir).
[66] Ventos favoráveis que permitiam o avanço das naus e a passagem do Cabo da Boa Esperança. Quando saíam já fora do período das monções havia quase sempre desastre.
[67] Pequena cabaça. Para marcar a idade, os índios guardavam uma castanha, de cada estação de caju.
[68] Canoa feita de um tronco escavado.
[69] Espécie de golfinho branco.
[70] Presunto.
[71] Cravar.
[72] Em privado, em particular.
[73] Inquérito.
[74] Bebidas feitas de ervas que provocavam alucinações.
[75] Ao chegarem ao Cabo da Boa Esperança, cinco navios da armada de Cabral naufragaram, um deles foi o de Bartolomeu Dias, não havendo um único sobrevivente. A  nau de Diogo Dias perdeu-se e andou um ano à deriva, conseguindo voltar a Cabo Verde, mas dos cerca de 100 homens que tinha, apenas restavam 13 que mal conseguiam manobrar o navio. (Ver conto “O Cometa”).